sábado, 5 de junho de 2010

diálogo


















- Você não compreende, não consegue compreender.

No meio do rio, eu via a pedra. A única naquela extensão azul de água, o pico negro erguido em inesperada fragilidade na solidão. Eu não tinha instrumentos para caminhar até ela, a pedra, tomá-la nos braços, por um instante debruçar minha ternura sobre seu isolamento num absurdo desejo de que em sua insensibilidade de coisa ela se fizesse sensível e, assim suavizada, contivesse o desespero amparando-se em mim. Por que ela se perdia assim e assim se assumia e se cumpria em pedra, dona de si mesma, dispensando qualquer afeto, qualquer comunicação? Ela se bastava. Parecia já ter ido além da própria estrutura num lento inventariar do mundo ao redor, como se seu pico tivesse olhos e esses olhos projetassem indagações em torno, avançando nas descobertas, constatações se fazendo certeza. E como se seu isolamento fosse deliberado, como se já não acreditasse em mais nada e tivesse escolhido o amparo apenas das águas, a precária proteção do azul como se tivesse escolhido o vento, a erosão, os vermes, os musgos que a roíam devagar. Assim, da mesma forma como outros escolhem o apoio das pessoas ou a nudez do campo, ela escolhera o desafio da entrega. O despojamento de ser, insolucionada e completa em suas fronteiras: pedra porque pedra fora era e seria num sempre que a sustentava, frágil e absoluta.

- Veja, os meus cabelos estão molhados, caminhei horas pela chuva querendo e não querendo procurar você.

Frágil e absoluta em sua carnação de mineral, as raízes, se as tivesse, encravadas no fundo do rio. A sua base por onde escorregam peixes, cobras, onde a lama se acumulava lenta tentando cobri-la por completo. Ondas frágeis de rio e, atrás, a ilha espalhada em verde contra o céu quase negro do entardecer. O sol além do rio, e o céu quase todo desfeito em cores que em breve afundariam no escuro. As cores morreriam, o claro se faria treva e a pedra mergulharia em sombras, impressentida - quem veria jamais uma pedra emergindo do negro que cobriria o rio? E renasceria, depois. Em cada amanhecer, renovada e sempre a mesma, endurecida em sua natureza. A pedra. Por que me doía e pesava por dentro, como se eu jamais conseguisse atingi-la? Ah meus gestos incompletos, meu olhos que não ultrapassavam o que viam - e ela me encarava, alheia ao meu espanto, inatingível quem sabe para sempre. E não seria apenas uma forma, uma silhueta de coisa nascendo da água, projetada contra o espaço, cercada de vazio, uma pedra? Que espécie de dureza havia nela, negando a penetração? A compreensão mesma de sua incompreensão - por que se fechava tanto, e tanto se esquivava, e sem se esquivar nem se fechar, feita em si - apenas uma pedra?

- Podia esperar de qualquer um essa fuga, esse fechamento. Mas não em você, se sempre foram de ternura nossos encontros e mesmo nossos desencontros não pesavam, e se lúcidos nos reconhecíamos precários, carentes, incompletos. Meras tentativas, nós. Mas doces. Por que então assim tão de repente e duro, por quê?

Uma pedra. Igual a si mesma, como só o são as naturezas inertes. As pessoas escorregam e, se num momento foram, no seguinte já não mais o são; a possibilidade de ser se reduz, contrai, escapa, ou num repente aumenta para explodir inesperada. As coisas se afirmam nelas mesmas em cada segundo de cada minuto. E em cada segundo futuro, serão ainda elas mesmas, sem se acrescentarem ou diminuírem. Para sempre, uma pedra será uma pedra. E por que então, enfim, esta palidez minha? Por que a encarava e pensava, e a constatava em sua permanência despida de mistérios e, no entanto, hesitava? Deveria compreendê-la no passar de olhos e ir adiante sem esperar. Contudo, esperava. De uma pedra - o quê? Se me machucava por dentro e quase tombava, meio aniquilado, impossível prosseguir. Derramar de ternura do vazio de minhas mãos, meus olhos quase verdes de tanto amor recusado, emoções informuladas pelo silêncio de noturna precisão - tudo convergindo para a pedra. Uma fatalidade, o inumano atingir o humano assim, de brusco? A nudez de meus pés devassava o frio. O vidro do rio, a lâmina do vento, a morte do sol. E a pedra. Inatingível.

- Compreenda, eu só preciso falar com você. Não importam as palavras, os gestos, não importa mesmo se você continua a fugir e se empareda assim, se olha para longe e não me ouve nem vê ou sente. Eu só quero falar com você, escute.

Inatingível. Escorregava em torno dela, percorrendo consciente uma trajetória de impossível. Em torno da pedra um círculo de repulsão que me jogava longe no momento da aproximação de seu centro. Cansaço pesando em mim, baixei a cabeça. As minhas mãos perdidas sobre a areia suja da beira do rio, as minhas mãos fremiam de fadiga. Círculos dourados percorriam o espaço, penetravam concêntricos em minhas órbitas, os círculos nascidos em torno da pedra. Pelos descaminhos, meu rumo se perdia, eu tornava a buscar, recomeçava- e novamente errava, e novamente insistia, Túrgido de ternura, me encarei. E baixei a cabeça com vergonha. A pedra prescindia de mim. Eu, que me projetava num tempo desconhecido, prescindir de tudo e, impotente, me projetava na pedra, lúcido de que não seria jamais o que ela estava sendo. Eu que não conseguia alcançar o que ela alcançara e para sempre me perderei entre as pessoas, vagando sem encontrar, sem saber sequer o que busco, o que buscarei. A pedra me agredindo com seu ser completo.

- É esse gelo por dentro que eu não consigo entender. Você se doou tanto quando eu não pedia, e no momento em que pela primeira vez pedi, você negou, você fugiu. É esse seu bloqueio de aço encouraçando o silêncio, eu não consigo entender.

Completo. Seria possível o absoluto em algo ou alguém às vésperas da destruição? Eu não sabia nem sei, ainda. Escurecia cada vez mais, a silhueta da pedra já se dissolvera talvez na noite, mas a sua imagem permanecia em minhas retinas. E no escuro, ela deixaria de ser? No escuro as coisas esquecem de si mesmas para se tornarem apenas coisas, desligadas de qualquer suspeita que se possa ter sobre elas? A imobilidade do rio com suas ondas fracas, feito um reafirmar de inércia. E eu. Que era eu naquele momento exato, jogado na areia, cheio de movimentos subterrâneos? Que era eu, com o incompleto de minhas tentativas que não se cumpriam, e permaneciam vagando num ritmo de espanto? O rio era o rio, o céu era o céu, a areia era a areia, mas a pedra recusara meu pensamento e se fizera unicamente em pedra. E eu que escorregava, me perdendo em corredores de luz filtrada, pelas varandas entrecobertas de samambaias, por solares arquitetados sobre pântanos, pelos pântanos mesmo de água pútrida e serpentes entrelaçadas em tronco de árvores viscosas - eu que me reconhecia ao longe e não ia além do gesto para me conhecer. Mas se o rio tinha peixes e lama e musgo no fundo, e tinha mistérios; e se o céu estava repleto de mundos formando o cosmos e o desconhecido infinito das galáxias, e tinha mistérios; se a areia onde haviam restado detritos e sulcos, onde vicejava uma grama rala, tinha também mistérios. Somente a pedra, até o fundo de si pedra, das nascentes ao topo, nada contendo além de seu ser.

- Seria isso, então? Você só consegue dar quando não é solicitado, e quando pedem algo você foge em desespero. Como se tivesse medo de ficar mais pobre, medo de que se alcance seu centro e nesse centro exista alguma coisa que você não quer mostrar nem dar ou dividir. Contido, dissimulado, você esconde essa coisa, será assim?

Ser. Já nada mais restava. Apenas a noite e, dentro dela, o meu silêncio de incompreensão. Meus passos afundavam na areia deixando uma esteira de poças que conteriam as estrelas, não fosse o imenso escuro de tudo. Cada vez mais lento eu caminhava. Para longe do rio. Para longe da pedra. Para longe do medo. Para longe de mim.

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