quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

aspiração



















A fuga do real,
ainda mais longe a fuga do feérico,
mais longe de tudo, a fuga de simesmo
a fuga da fuga, o exílio
sem água e palavra, a perda
voluntária de amor e memória,
o eco
já não correspondendo ao apelo, e este fundindo-se,
a mão tornando-se enorme e desaparecendo
desfigurada, todos os gestos afinal impossíveis,
senão inúteis,
a desnecessidade do canto , a limpeza
da cor, nem braço a mover-se nem unha crescendo.
Não a morte, contudo.

Mas a vida: captada em sua forma irredutível,
já sem ornato ou comentário melódico,
vida a que aspiramos como paz no cansaço
(não a morte),
vida mínima, essencial; um início; um sono;
menos que terra, sem calor; sem ciência nem ironia;
o que se possa desejar de menos cruel: vida
em que o ar, não respirado, mas me envolva;
nenhum gasto de tecidos; ausência deles;
confusão entre manhã e tarde, já sem dor,
porque o tempo não mais se divide em seções; o tempo
elidido, domado.
Não o morto nem o eterno ou o divino,
apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente
e solitário vivo.
Isso eu procuro.

[drummond - vida menor]

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

resposta ao post anterior

Oi, Leilinha,

Que imagem feia você tem de mim, minha flor. Todos possuem seu próprio demônio, eu sou o seu. Aliás, eu sou você. Não poderia fazer parte da sua vida como um intruso, você me acolheu ao nascer, somos feitos da mesma matéria. Vai querer me expulsar no bem-bom, justo agora que você é mulher adulta? Pense bem, sua vida ficaria um tédio sem mim. Eu sou o que te faz levantar da cama todos os dias, boba. E o que te faria deitar tantas outras, se você não fosse tão resistente aos meus apelos.
Que vulnerável você está, meu bem. Sofrendo por bobagem. Como se eu fosse seu inimigo. Eu sou a única coisa viva que você tem. Não fosse eu, você seria uma boazinha, uma fofa - pode coisa pior?
Algumas pessoas até conseguem me abafar, mas usam métodos mais eficientes do este seu de pedir - pedir santa ingenuidade! - para eu ir embora. Você não reza, pra começar. Se quisesse mesmo que eu desaparecesse, você rezaria, mas não reza, graças a Deus. Não suporto essa gente que junta as mãos, fecha os olhos, abaixa a cabeça e fica falando baixinho, num cochicho irritante. Elas se matariam em troca de um pecado, quem lhes dera um erro em suas vidas. Inventam que tudo é coisa do demo - coisa minha - para terem do que se orgulhar aos domingos. "Pequei, padre!" Devem achar isto excitante. Que pobreza.
Dessas eu me afasto mesmo, não suporto falsidade. Mas você não reza, princesa, então tem salvação.
Você apenas pede, numa cartinha singela, que eu a deixe em paz. Só faltou escrever "vade-retro". Mas você não escreveu, não cometeu esse deslize abominável. Você me quer, amada. Você me deseja ardentemente. Você adoraria que eu tomasse conta de você. Pelo menos foi isso que eu entendi naquela sua última frase. Simpatiza comigo? Ora, você me ama. O que demonstra que tem um Q.I. razoável. Vamos namorar?
Agora que você está mais mansinha, vamos deixar de viadagem e ir ao que interessa. Ao que te interessa. Se quiser que eu tome posse, eu tomo. Te ajudo a quebrar os enfeites da casa, a pegar estradas e não voltar, a se deixar seduzir por trombadinhas. Qualquer problema, você joga a culpa em mim, eu seguro a onda.
Mas há maneiras de fazer isto sem tanto estardalhaço. E sem tanto medo. Vem cá, bonitinha, se aproxime.
Há quanto tempo você não se sente mulher? Mulher e demônio são uma coisa só, você sabe. Deixa eu ver este rostinho. nossa, quanta melancolia neste olhar. Você está perdendo as forças de tanto resistir a mim. E eu nem sou tão malvado assim, garota. Meu papel é de apenas estimular a sua liberdade, porque não é possível alguém ser escravo do bom comportamento o tempo todo. Pense bem: você tem a mania irritante de atender a todos os telefonemas, todos. Não atenda. Deixa tocar de vez em quando, não interrompa o que estiver fazendo, mesmo que esteja deitada no sofá olhando pro teto. Não dê atenção ao chato que está chamando. E se você esqueceu o aniverário da sua irmã, esqueceu, ora. Sem drama. Não caia no papo chantagista dela, todo mundo tem o direito de esquecer de algumas datas, mande ela pentear macaco. E quando não estiver com vontade de dizer a verdade, minta. Quer trocar uma tarde de trabalho por um banho de piscina, o que te impede? E se quer ter sexo com alguém diferente, a mesma pergunta: o que te impede? Sou o seu avalista, meu bem.
E pode exagerar na conta. Tenho certeza de que suas fantasias são mais radicais do que estas bobagens que te propus. Você é muito mais imaginativa do que eu, todas vocês são. Quer sumir por uns dias? É só deixar um bilhete, sumirei por uns dias, tem carne congelada na geladeira. Isso da carne congelada vai amenizar o golpe. Tudo o que uma família precisa é ser alimentada. Nem vão dar pelo seu desaparecimento. Puf. Mamãe evaporou.
Enxugue essas lágrimas inúteis, levante este queixo e vá tratar da vida. Faça tudo o que deseja fazer. Você acha que depois de morta vai ganhar bônus? Uma prorrogação para tentar sair desse empate? Esqueça o empate. Vença. Perca. Ofereça a si mesma algum resultado.
É você mesma que assina. E eu.


sábado, 16 de janeiro de 2010

olá, coisa ruim...

Olá, coisa ruim, coisa péssima, o assunto é contigo - e comigo. Não dizem que a gente deve exorcizar nossos demônios? Não sei como se faz isso, então resolvi escrever, que é sempre um método. Você aí - na verdade, aqui: escondido em mim, calado, canastrão. No funfo você se diverte, adora me ver atrapalhada. "Hoje ela se entrega, hoje ela caí." Não caí. Você vai me tentar até o final, mas não entro no seu esquema, não vou ceder.
Por que você não se instala em outro corpo, em outra mente, que tal vazar, me esvaziar, se escafeder? Eu já acreditei, um dia, que você era um inquilino necessário, o tal do contraponto, um equilíbrio, algo que todo mundo traz dentro, alimenta e blablablá. Mas estou cansada. Esgotada mesmo. Não consigo mais negociar com você. Esta é uma carta de demissão. Tô te demitindo, te expulsando, porque você é que tem que sair, eu não posso sair de mim mesma.
Foi por pouco, ontem. Tem sido por pouco todos os dias. Semana passada, quando eu peguei a estrada e fui dirigindo até a quela cidadezinha para dar uma palestra na universidade, pensei que não iria conseguir voltar. Me veio a idéia bem clara: daqui eu sigo em frente, não retorno mais, o dinheiro que tenho me basta pra pagar umas poucas diárias e a gasolina, depois arranjo um emprego em qualquer buraco e começo outra vida, que nem nos filmes. Pinto o cabelo, troco de nome, ninguém me acha. Claro que eles iriam me procurar, porque eu não posso ser a melhor mãe do mundo mas eles não têm outra.
E com aquele pivete a mesma coisa. Eu podia ter subido na carona daquela moto, eu bem que quis. Um guri bonitinho, sem camisa, de corpo bom, me secando na fila do banco como se eu fosse uma biscate, me esperando na saída, quer que eu te leve pra algum lugar? Eu queria, viu. Eu queria ir com ele feito uma pizza, naquela moto enferrujada, com aquele guri sem camisa. O que de mau poderia me acentecer? Levar umas bofetadas na cara, ser comida por três no meio do mato, o cara me roubar o relógio. Mas poderia ter sido também uma tarde doce. A gente nunca sabe o que perdeu. Voltei pra casa com a integridade de sempre e , pra variar, nenhuma surpresa me aguardava.
Ontem eu pensei que iria surtar . Tudo começou com aquela voz metálica da vizinha falando com o zelador através da janela do terceiro andar. Amanhê tenho que passar roupa. Amanhê. E continuava: passo na terça-feira, às vezes na quarta. Às vez. E não era só o fato dela falar desse jeito medonho, era também o fato de ela passar roupa toda terça-feira, como se fosse uma missa, tem que ser aquele dia, naquela hora, em nenhuma outra: uma mulher programada para passar roupa na terça. Claro que não tenho nada haver com isso, mas foi me dando uma irritação, fui pensando na minha vida e me lembrei que vou ao supermercado toda segunda, e faço a unha toda a terça, e toda quarta-feira minha sogra almoça conosco, e me deu uma raiva desses compromissos que a gente inventa para se sentir com os pés no chão e para evitar sair por aí fazendo besteria, então eu pensei: vou fazer besteria, vou fazer. Tive vontade de quebrar a casa toda. Derrubar enfeites da cristaleira, quebrar tudo que fosse vidro, jogar cadeiras da janela, só pelo prazer do estrondo, mas antes que eu iniciasse minha carreira de vândala comecei a chorar, e foi um choro tão sentido que você até riu de mim, pensou "hoje ela se entrega, hoje ela cai", mas eu não caí, e meia hora depois estava dobrando as roupas das crianças que estavam todas esparramadas pelo chão.
Você é forte, demônio. Eu também sou. Mas rogo por trégua, jogo a toalha, te peço de joelhos: tome um chá de sumiço, vá dar uma volta, aportar em outra alma, que esta minha já está gasta e não vê graça alguma nas suas provocações. Quero que você me deixe, porque simpatizo cada vez mais com você.
Leila
[Martha Medeiros - Tudo que eu queria te dizer]

domingo, 10 de janeiro de 2010

o amor

Tudo o que vejo são telas digitais, um novo mundo feito de chips e megabytes, e você vem falar de amor, um amor que deixaria a todos incrédulos por ser real demais.
Não recebi suas cartas, mas sei que elas foram escritas, o universo regido por ícones eletrônicos induz a fantasias telepáticas. Ser intuitiva também é uma forma de conexão, há muitas cartas extraviadas viajando pelo espaço, sem fios ou cabos, sem satélites, palavras silenciadas e igualmente transmitidas. Amor é um troço raro e sempre de vanguarda.
Também escrevo minhas cartas que não são postadas, cartas digitalizadas no sonho, um mundo de excelentes intenções, nostalgias, poesias, essas coisas quase fluviais.
Você vem falar de amor de um modo que emociona, eu vou falar de amor como se fosse sua resposta.
Agradeço, primeiramente, o amor recebido e negado, demosntrado e não, existido e inventado. Pouco importa os plurais de um amor, seus adjetivos, seus diagnósticos e o tempo percorrido, se foi um amor de verão ou se comemorou vinte bodas anuais, o amor que sinto não é dado a configurações, o amor transcende, nunca foi mortal como a gente.
Gosto destes sons, embala o amor a rima, navego empurrada pelos ais e por sufixos e sílabas que remam, remam, aqui vão minhas palavras navais. O amor não tem ancoradouro, porto, cais - o amor é navegante e recolhe pessoas neste mar de distraídos, salva vidas. O amor que você narra e a mim dirige é amor primitivo, fora de catálogo, é sorte dos amores ambientais, estão por toda parte, para senti-lo requer apenas querê-lo. Conceitos fugazes do amor? Não creio. Há os amores produzidos e os amores naturais, os amores duros e os rarefeitos, há os que nascem no peito e os ancestrais, amores vários, todos iguais.
Em diversas cartas há seu apelo e sua culpa pelo amor não vivido. O amor vive apesar de nós, tudo o que se senti é validado por ser existente, não sofra mais. Foram cartas não assinadas, não enviadas, talvez escritas por mais de uma pessoa, tanto faz. São cartas de amor, e mesmo com angústia e anonimato, sobrevive nelas o tesouro de um sentimento bruto, porém não violento. O amor comentado nestes tempos que correm é produto, assunto de revistas e jornais, o amor nos tempos que correm deveria ir mais devagar, aceitarem-se múltiplos, gozo e gás. Você que escreve mentalmente, você que escreve cartas pra fixar, você que não sabe direito que amor é esse e que só quer se desculpar, você que ama livre e você entre grades, você que ama em pensamento, você e você e você, nós todos e nossos amores ornamentais, que ainda nos fazem chorar e mal entender, carentes existenciais, você e você e você e nossas cartas abortadas, digamos para nós mesmos: comunicar é lindo e gritar o amor é nobre, dizer te amo é balsamo e mais ainda, escutar. Mas o amor independe, o amor, rementente, é transcrito no olhar, há quem entenda e há quem procure lê-lo em outro lugar
. Amor é carta que mesmo extraviada está ora chegando e partindo, e pode cair em mãos que não as destinadas, mas onde estiverem as palavras, escritas ou caladas, onde estiverem os desejos e seus códigos postais, não importa a data em que foram selados, serão sempre cartas de amor e amores que alcançaram seus finais. [carta extraviada 5]

tudo

ao lado teu