sexta-feira, 30 de abril de 2010

Isto



Que eu pudesse, enfim, dizer o que trago dentro de mim.
Gritar: gente, mentia-vos
Ao dizer que não tenho ISTO em mim,
Quando ISTO permanece cá de dia e de noite.
Embora, justamente graças a ISTO
Soube descrever as vossas cidades inflamáveis,
Os vossos breves amores e jogos desfazendo-se em pó,
Brincos, espelhos, uma alça que caía,
Cenas em quartos e em campos após a batalha.

A escrita era para mim estratégia de camuflagem,
De apagar vestígios. Porque não se gosta daqueles
Que aspiram o proibido.
Socorro-me dos rios nos quais nadava, dos lagos
Com uma passagem entre os juncais, do vale,
Onde o eco da cantiga é secundado pela luz do ocaso,
E confesso que os meus elogios extáticos da existência
Poderiam ser meros exercícios de estilo elevado,
Mas por baixo estava ISTO que não sou capaz de nomear.

ISTO é comparável aos pensamentos do desabrigado
Quando vai pela cidade gélida e estranha.

E ao instante em que o judeu acossado vê aproximarem-se
Os pesados capacetes dos gendarmes alemães.

ISTO revela-se também quando um príncipe vai à cidade
E vê o mundo real: a miséria, a doença, a velhice e a morte.

ISTO está igualmente no rosto petrificado de quem
Descobriu que foi para sempre abandonado.

E nas palavras do médico sobre a sentença sem recurso.

Porque ISTO significa o esbarrar contra o muro,
Sabendo que ele não cederá a quaisquer implorações nossas.

terça-feira, 20 de abril de 2010

andar é reconhecer

quero saber se...










Não me interessa saber como você ganha a vida. Quero saber o que mais deseja e se ousa sonhar em satisfazer os anseios do seu coração.
Não me interessa saber sua idade. Quero saber se correria o risco de parecer tolo por amor, pelo seu sonho, pela aventura de estar vivo.
Não me interessa saber que planetas estão em quadratura com sua lua. O que eu quero saber é se você já foi ao fundo da sua própria tristeza, e se as traições da vida o enriqueceram ou se você se retraiu e se fechou, com medo de mais dor. Quero saber se você consegue conviver com a dor, a minha, a sua, sem tentar escondê-la, disfarçá-la ou remediá-la.
Quero saber se você é capaz de conviver com a alegria, a minha, a sua, de dançar com total abandono e deixar o êxtase penetrar até a ponta dos seus dedos, sem nos advertir que sejamos cuidadosos, que sejamos realistas, que nos lembremos das limitações da condição humana.
Não me interessa se a história que você me conta é verdadeira. Quero saber se é capaz de desapontar o outro para se manter fiel a si mesmo. Se é capaz de suportar uma acusação de traição e não trair sua própria alma, ou ser infiel e, mesmo assim, ser digno de confiança.
Quero saber se é capaz de enxergar a beleza no dia-a-dia, ainda que ela não seja bonita, e fazer dela a fonte da sua vida.
Quero saber se você consegue viver com o fracasso, o seu e o meu, e ainda assim pôr-se de pé a beira do lago e gritar para o reflexo prateado da lua cheia: Sim!
Não me interessa saber onde mora e quanto dinheiro tem. Quero saber se, após uma noite de tristeza e desespero, exausto e ferido até os ossos, é capaz de fazer o que precisa ser feito para alimentar seus filhos.
Não me interessa quem você conhece ou como chegou até aqui. Quero saber se vai permanecer no centro do fogo comigo sem recuar.
Não me interessa saber onde, ou com quem estudou. Quero saber o que o sustenta, no seu íntimo, quando tudo mais desmorona.
Quero saber se é capaz de ficar só consigo mesmo e se nos momentos vazios realmente gosta da sua companhia.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

e perdura na solidão do silêncio...
















O amor nasce velho em qualquer coração;
é fruto tardio
de ancestralidades feridas,
de descompassos hereditários,
do choro antigo das várias gerações,
resultado inebriante
dessa magia de converter lágrimas
numa quase-cachaça.

Todo amor nasce marcado
de lutas recentes, mas findas;
soldado conhecedor de cada canto
do seu campo de batalha,
dos requintes militares,
dos artifícios bélicos
da marcial arte de amar;
discípulo virado em mestre,
professor da triste ciência
de tornar sangue
num quase-veneno.

Todo amor nasce maduro.
Superada a longa seca,
a intempérie,
eis que surge indene
com a esperança perene
de uma vida
que é quase-renúncia.

Todo amor nasce morto,
já vivido, já cantado,
já doído, já amado.

Todo amor nasce duro,
escudo
de ancião experimentado,
que esconde um quase-menino
indefeso.

Todo amor nasce quase;
e se é todo, não o é.

Todo amor nasce pedra
perpétua, e perdura
na solidez de um silêncio
que é quase confissão.

domingo, 18 de abril de 2010

não me mandes para o canto



Yael Naim - Lonely
[lindo poema que ganhei de uma estrela disfarçada de gente... - obrigada ori !]

quarta-feira, 14 de abril de 2010

palavras ao vento



Cássia Eller - Palavras ao Vento

que a solidão não seja deserta



[...]importa-me que a solidão não seja deserta, por isso fico sozinho com muitos amigos cada vez mais imaginários: a amália, a patty waters, o caetano veloso, a lisa gerrard, a diamanda galás, a billie holiday, o devendra banhart, o bosch, o william blake, o conde de lautréamont, o lars von trier, o oscar wilde, o william shakespeare, o camões, o jorge melícias, a josefa de óbidos, o mozart, o da vinci, o josé saramago, a vashti bunyan, a baby dee, o cartola, o david tibet, o ruy belo, o vitorino nemésio, a lisa santos silva, david sylvian, o samuel beckett, o rui lage, o luís miguel nava, o al berto, o jean genet, o chico buarque, o antónio lobo antunes, o ingmar bergman, o júlio saul dias, o hitchcock, o david lynch, a michelle pfeiffer, o antonio gamoneda, a nina simone, a ella fitzgerald, o mário de carvalho, o raul perez, o loius armstrong, o chet baker, o mário cláudio, o artur do cruzeiro seixas, o mário de cesariny, o lee ranaldo, a kim gordon, o mahler, o joão peste, o joão gilberto, a elizabeth frazer, o william burroughs, o franz kafka, a isabel de sá, o daniel faria, o eça de queirós, o manuel de oliveira, a agustina, o federico fellini, o pier paolo pasolini, o vítor rios, o ferreira gullar, o bach, o vergílio ferreira, a chan marshall, o rostropovich, o gould, o arvo part, a adília lopes, o josé régio, o baudelaire, o t. s. elliot, o umberto eco, o ítalo calvino, a lula pena. etc etc etc etc. [...]
se não fosse a escrita só a música me ganharia. ou a pintura. ou o cinema. o teatro. ou um projecto incrível em áfrica ou outro lugar qualquer onde pudesse salvar uma vida e entender porque sempre acreditei que entre tudo os outros são sempre o mais importante do mundo. como se deus existisse e quisesse muito que eu acreditasse nele."

quisiera...

quinta-feira, 8 de abril de 2010

não sei como te dizer














Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.
Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.

saudade de nós próprios

questão de falta de tempo!

terça-feira, 6 de abril de 2010

a vida















A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;

a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;

a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.

chove chuva!

nasci pra te conhecer...

sábado, 3 de abril de 2010