domingo, 31 de outubro de 2010

tatuagem



Quero ficar no teu corpo feito tatuagem
Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
Quando a noite vem
E também pra me perpetuar em tua escrava
Que você pega, esfrega, nega
Mas não lava

Quero brincar no teu corpo feito bailarina
Que logo se alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem
E nos músculos exaustos do teu braço
Repousar frouxa, murcha, farta
Morta de cansaço

Quero pesar feito cruz nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem
Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva
Marcada a frio, a ferro e fogo
Em carne viva

Corações de mãe
Arpões, sereias e serpentes
Que te rabiscam o corpo todo
Mas não sentes

baby

um suor de silêncio

























Não encontrarás aqui a fluência
de algum ventre polido ou verso límpido
porque estas palavras conhecem as paredes
que não ouviram a angústia e a vertigem

mas têm o sal das lágrimas obscuras
para sempre ignoradas para sempre futuras
nem ouvirás o som das aves frias
mas sentirás o arrepio de sombras sobre as pedras

OUVIRÁS TALVEZ UM SUOR DE SILÊNCIO

abre o seu punho e ri




como o sol que bate nos teus olhos





















© chat noir

As coisas simples dizem-se depressa, tão depressa que nem conseguimos que as ouçam. As coisas simples murmuram-se, um murmúrio tão baixo que não chega aos ouvidos de ninguém. As coisas simples escorrem pela prateleira da loja, tão ao de leve que ninguém as compra. As coisas simples flutuam como vento, tão alto, que não se vêm. São assim as coisas simples: tão simples como o sol que bate nos teus olhos, para que os feches, e as coisas simples passem como sombra sobre as tuas pálpebras.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

nem eu, nem ninguém

sem sua vida...

podes querer a aurora

























larafairie.deviantart


Podes querer a aurora
quando ames.
Podes
vir e reclamar-te como eras.
Conservei intacta tua paisagem.
A deixarei em tuas mãos
quando estas cheguem, como sempre,
anunciando-te.
Podes
vir a reclamar-te como eras.
Mesmo que já não sejas tu.
Mesmo que minha voz te espere
sozinha em seu acaso
queimando
e teu sonho seja isso e muito mais.
Podes amar a aurora
quando queiras.
Minha solidão aprendeu a ostentar-te.
Esta noite, outra noite
tu estarás
e voltará a gemer o tempo giratório
e os lábios dirão
esta paz agora esta paz agora.
Agora podes vir a reclamar-te,
penetrar em teu lençóis de alegre angústia,
reconhecer teu quente coração sem desculpas,
os quadros persuadidos,
saber-te aqui.
Haverá para viver qualquer fuga
e o momento da espuma e do sol
que aqui permaneceram.
Haverá para aprender outra piedade
e o momento do sonho e do amor
que aqui permaneceram.
Esta noite, outra noite
tu estarás,
cálida estarás ao alcance dos meus olhos,
longe já da ausência que não nos pertence.
Conservei intacta tua paisagem
mas não sei até onde está intacta sem ti,
sem que tu lhe prometas horizontes de névoa,
sem que tu reclames sua janela de areia.
Podes querer a aurora quando ames.
Deves vir a reclamar-te como eras.
Mesmo que já não sejas tu,
Mesmo que contigo tragas
dor e outros milagres.
Mesmo que sejas outro rosto
do teu céu para mim.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

bad romance

once in a blue moon

a vida é bela quando é um êxtase
























annarexic.deviantart

Sou um poeta quase místico:
A vida é bela quando é um êxtase.

Ah! não ter um pensamento, um só pensamento no cérebro,
não vigiar a vida, a vida inquieta, a vida múltipla da sensibilidade,
mas vivê-la, de olhos cerrados, num silêncio cheio de ritmos;
não ouvir as palavras frias que mudam o destino,
ou que o fazem semelhante a um autômato;
e saber a toda hora,
saber sempre
que a vida é bela quando é um êxtase.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

os ventos do destino



















ictenbey. deviantart


Muitas vezes observei
a figura de mármore que esculpiram para mim:
um barco ancorado com as velas recolhidas.
Não representa a minha chegada a um porto de destino,
mas a minha existência.
Pois o amor foi-me oferecido e eu fugi dos seus enganos;
o desgosto bateu-me à porta, mas eu tive medo;
a ambição chamou por mim, mas eu receei a maré.
No entanto, sempre desejei dar um sentido à minha vida.
Agora sei que devemos erguer as velas
e tomar os ventos do destino
aonde quer que conduzam o barco.
Dar um sentido à nossa vida pode terminar em loucura,
mas uma vida sem sentido é um flagelo
de desassossego e de vago desejo –
é como um barco que suspira pelo mar e não se atreve.

Daughters

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

ternura




















younghearts - well i wonder

vôo a céu aberto


















© kamenf



O mundo filtra-se pelos ouvidos
De quem não vê senão a própria noite:
Meus olhos pegam sons com dedos falhos
mas nada tem substância aqui mais dentro.
Risos e palavras nesta sombra eterna
chegam e nadam, giram, se entrechocam
em desenhos de luz que não entendo.

Estendo o meu coração, ouvido inquieto,
em busca de algum som definitivo
que abra em claridade estes dois olhos secos,
e me lance desta pedra em vôo a céu aberto.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

até ser somente voz e rumor de sorriso


















© Julia Iwo



Temos chegado ao crepúsculo neutro
onde o dia e a noite se fundem e se igualam.
Ninguém poderá esquecer este descanso.
Passa sobre minhas pálpebras o céu fácil
a deixar-me os olhos vazios de cidade.
Não penses agora no tempo de espinhos,
no tempo de pobres desesperos.
Agora só existe o desejo nu,
o sol que se desprende de suas nuvens de pranto,
seu rosto que se interna noite adentro
até ser somente voz e rumor de sorriso.

o ultimo romântico

troca

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

o dia abre sua mão...


























u2 - beautiful day

deixo que o inevitável dance















© Laetitia Eskens


Já não é preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...

Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem de deixar escorrer a força dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...

Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
E deveria rir, se me restasse o riso,
das tormentas que pouparam as furnas da minha alma,
dos desastres quer erraram o alvo de meu corpo...

domingo, 17 de outubro de 2010

paraíso



















© george
gradinaru




Ela é inteiramente o que comtempla:
não a flor, mas o espaço fora
das coisas.
Nessa liberdade
sua pequena mão contorna desenhos
que nem a minha lucidez
alcança.

Não quero indagar se faz sentido,
nem a chamo para o cotidiano:
nada que eu lhe possa mostrar
vale o seu olhar
de agora.


[para minha filha Julia com muito amor...]

sábado, 16 de outubro de 2010

Can't Take My Eyes Off You

sobre navios e navegantes












imagem carlos silva


Onde quer que se imagine, em Banguecoque, Dublin, Valparaíso, é sempre tempo de navegar. Parte-se apenas com a roupa do corpo por noites a fio em direção ao mar. Cada aventura tem seu preço. Você paga pela viagem com o seu desespero e segue para o norte, emigrante. Eu pago com a minha fé e vou para o sul, quase náufrago. Você chegará muito cedo e eu talvez tarde de mais. Podemos também estar juntos, debruçados sobre o mesmo convés e, no entanto, eu não vejo o que você vê, o meu destino não é igual ao seu. Há quem navegue só para chegar, oh Senhor, perdoai-os, eles não sabem o que fazem. Uns que vão toda manhã ao porto para ouvir o apito da partida, sem coragem de embarcar. Existem ainda os passageiros clandestinos, que viajam em surdina para jamais serem notados. E os que se deixam socorrer à deriva, abraçados à costela de um bote, e que agora, a bordo de um transatlântico, redescobrem o mapa das águas. E os marujos, como esquecê-los? Esses vivem permanentemente entre dois continentes, guiando-se pelas estrelas, medindo a longitude no vento, surpreendendo em toda nova jornada sua primeira jornada. Algumas distâncias são curtas, mas leva-se uma eternidade para atravessá-las. Outras não exigem mais do que um espírito de ilha, descentrado, selvagem e solitário que as torna memoráveis. As condições de viagem não devem ser ignoradas: mudanças de rota, variações de clima, quão viçosa ou antiga a embarcação se mostra, tudo isso influi no prazer do itinerário. Cruzar o horizonte debaixo de um temporal não será o mesmo que velejar sob o sol. Pode o trajeto ser retilíneo, sem grandes acontecimentos nem sobressaltos, e o navio ser ele mesmo este grande acontecimento, este sobressalto. E pode o navio pretender visitar lugares extraordinários com uma velocidade de 30 nós, abrigando em todo o seu comprimento mais de mil tripulantes, e a meio do caminho o casco se abrir e tudo afundar de um só golpe. Em qualquer canto do mundo eles esperam. Na crista do armário, no estaleiro da gaveta trancada à chave, na vasta esplanada de uma estante, lá estão eles, a postos. Como os anos são breves e como o dia é longo! - até que algum rio venha movê-los, tirá-los da margem. Alguém que, num simples gesto de mãos, será capaz de lhes devolver o oceano.

a canção do estrangeiro
















© Andreas Kauppi



Estou à procura
de um homem que não conheço,
que nunca foi tão eu mesmo
quanto desde que comecei a procurá-lo.
Teria ele meus olhos, minhas mãos
e todos esses pensamentos semelhantes
aos destroços deste tempo?
Estação de mil naufrágios,
o mar deixa de ser mar,
para tornar água gelada dos túmulos.
Mas, mais longe, quem sabe mais longe?
Uma menina canta a contragosto,
enquanto a noite reina sobre as árvores,
pastora em meio a seus carneiros.
Venham arrebatar do grão de sal a sede
que nenhuma bebida poderá mitigar.
Com as pedras, um mundo se devora
para ser, como eu, de parte alguma.

busca-me


















imagem
burcindrummer deviantart

Sei que há uma pessoa
que, dia e noite, me busca em sua mão,
encontrando-me, a cada minuto, em seu calçado.
Ignora que a noite está enterrada
atrás da cozinha com esporas?

Sei que há uma pessoa composta de minhas partes,
que eu completo sempre que o meu vulto
cavalga sua exacta pedrazinha.
Ignora que ao seu cofre
não voltará nenhuma moeda que saiu com seu retrato?

Sei o dia,
mas o sol escapou-me;
sei o acto universal que fez na cama
com alheia coragem e essa água morna, cuja
superficial frequência é uma mina.
Tão pequena é, acaso, essa pessoa
que até seus próprios pés assim a pisam?

Um gato é a fronteira entre eu e ela,
mesmo ao lado de sua malga de água.
Vejo-a pelas esquinas, abre e fecha
sua veste, antes palmeira interrogante...
que poderá fazer senão mudar de pranto?

Mas ela busca-me, busca-me. É uma história!

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A luz irrompe onde nenhum sol brilha















© MADART



A Fine Frenzy - Whisper


A luz irrompe onde nenhum sol brilha;
onde não se agita qualquer mar, as águas do coração
impelem as suas marés;
e, destruídos fantasmas com o fulgor dos vermes nos cabelos,
os objectos da luz
atravessam a carne onde nenhuma carne reveste os ossos.
Nas coxas, uma candeia
aquece as sementes da juventude e queima as da velhice;
onde não vibra qualquer semente,
arredonda-se com o seu esplendor e junto das estrelas
o fruto do homem;
onde a cera já não existe, apenas vemos o pavio de uma candeia.
A manhã irrompe atrás dos olhos;
e da cabeça aos pés desliza tempestuoso o sangue
como se fosse um mar;
sem ter defesa ou protecção, as nascentes do céu
ultrapassam os seus limites
ao pressagiar num sorriso o óleo das lágrimas.
A noite, como uma lua de asfalto,
cerca na sua órbita os limites dos mundos;
o dia brilha nos ossos;
onde não existe o frio, vem a tempestade desoladora abrir
as vestes do inverno;
a teia da primavera desprende-se nas pálpebras.
A luz irrompe em lugares estranhos,
nos espinhos do pensamento onde o seu aroma paira sob a chuva;
quando a lógica morre,
o segredo da terra cresce em cada olhar
e o sangue precipita-se no sol;
sobre os campos mais desolados, detém-se o amanhecer.

com a minha incerteza voz ilumino

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

sou uma pausa














© Mal Smart



Entre partir e ficar hesita o dia,
enamorado de sua transparência.

A tarde circular é uma baía:
em seu quieto vai e vem se move o mundo.

Tudo é visível e tudo é ilusório,
tudo está perto e tudo é intocável.

Os papéis, o livro, o vaso, o lápis
repousam à sombra de seus nomes.

Pulsar do tempo que em minha têmpora repete
a mesma e insistente sílaba de sangue.

A luz faz do muro indiferente
Um espectral teatro de reflexos.

No centro de um olho me descubro;
Não me vê, não me vejo em seu olhar.

Dissipa-se o instante. Sem mover-me,
eu permaneço e parto: sou uma pausa

Eu não sei dançar



Às vezes eu quero chorar
Mas o dia nasce e eu esqueço
Meus olhos se escondem
Onde explodem paixões
E tudo que eu posso te dar
É solidão com vista p'ro mar
Ou outra coisa p'rá lembrar

Às vezes eu quero demais
E eu nunca sei se eu mereço
Os quartos escuros pulsam
E pedem por nós
E tudo que eu posso te dar
É solidão com vista p'ro mar
Ou outra coisa p'rá lembrar
Se você quiser eu posso tentar mas
Eu não sei dançar
Tão devagar p'rá te acompanhar


terça-feira, 12 de outubro de 2010

sobre o tempo
















© Anna Hurtig


pato fu - sobre o tempo

A infância era uma vastidão de silencio,
por mais que cantassem os pássaros,
e que as tempestades rugissem entre os trovões e o vento.
Por mais que as ruas se enchessem de vozerio,
que as conversas familiares circulassem pelas mesas, pelas salas, pelos jardins.
A infância era aquela voz presa atrás de muros.
Aquela pergunta a subir no tempo.
Que só o tempo responderá.

infância


















© Ben Goossens

Minha infância de menina sozinha
deu-me duas coisas que parecem negativas,
e foram sempre positivas para mim:
Silêncio e Solidão.
Essa foi sempre a área da minha vida.
Área mágica, onde os caleidoscópios
inventaram fabulosos mundos geométricos,
onde relógios revelaram o segredo de seu mecanismo
e as bonecas, o jogo do seu olhar [...].

se avistem as estrelas

para acordá-los

romaria

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

no ápice da pulsação

intactos de aurora


















© Mal Smart


estamos sob o mesmo teto
secreto
onde o sol indesejável é barrado
eu e você
sob o mesmo nós
dois, sóis
sob o mesmo pôr
(o enigma do amor)
do sol
onde todo contorno finda
estamos
sob a mesma pálpebra
agora
já e ainda
intactos de aurora.

aqui dentro do lado de fora

























o buraco do espelho está fechado

agora eu tenho que ficar aqui

com um olho aberto, outro acordado

no lado de lá onde eu caí


pro lado de cá não tem acesso

mesmo que me chamem pelo nome

mesmo que admitam meu regresso

toda vez que eu vou a porta some



a janela some na parede

a palavra de água se dissolve

na palavra sede, a boca cede

antes de falar, e não se ouve


já tentei dormir a noite inteira

quatro, cinco, seis da madrugada

vou ficar ali nessa cadeira

uma orelha alerta, outra ligada


o buraco do espelho está fechado

agora eu tenho que ficar agora

fui pelo abandono abandonado

aqui dentro do lado de fora

quando a manhã atinge à noite




















imagem © Andreas Kauppi

[...]
Sob uma atitude de calma e dura claridade não se dirigia a ninguém e abandonava-se atenta como a um sonho que vai se esquecer. Atrás de movimentos seguros tentava com perigo e delicadeza tocar no mesmo leve e esquivo, buscar o núcleo feito de um só instante, enquanto a qualidade não posa em coisas, enquanto o que é sim não se desequilibra em amanhã – e há um sentimento para a frente e o outro que decai, o triunfo tênue e a derrota, talvez apenas respiração. A vida se fazendo e a evolução do ser sem o destino – a progressão da manhã não se dirigindo à noite mas atingindo-a.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

uma vontade de ser o mundo em poucas palavras...





















imagem
©andreas kauppi


Uma vontade de viver os seus cabelos,
de respirar os seus olhos,
de perseguir a direcção dos seus movimentos...

Uma vontade de ser chama numa casa abandonada,
de ser água,
gota de água,
ao instante da sua lágrima,
ao instante da sua sede...

Uma vontade de ser o Mundo em poucas palavras...

Uma vontade de ser a vontade,
todas as vontades,
toda a força,
toda a garra de uma mulher reprimida,
de todas as mulheres reprimidas,
de todo o choro que finge riso...

Uma vontade de ser poesia na folha que desmaia Outono...

Uma vontade de ver no desejo uma acção,
de ver num sonho uma vida,
de ver numa noite toda a luz
que existe além da nossa realidade...

Fecho os olhos.
Pôr-do-sol.
Acorda o arco-íris,
todas as cores na sombra da sua mão,
na sombra da sua mão,
na sombra da sua mão...

Uma bonita confusão

verdade da alma



















© Mal Smart


O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo de conhecimento, que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito humano atenta mais facil mente nas diferenças que nas semelhanças, esquecen do-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer são capazes de imaginar. Pala vra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo ape¬sar de serena, rumorosa até quando nos diz o silêncio, pois esse ser sedento de ser, que é o poeta, tem a nostal gia da unidade, e o que procura é uma reconciliação, uma suprema harmonia entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência.
Essa revelação do poeta, e dos outros com ele, essa descida ao coração da alma, de que Heraclito encon trou a fórmula, essa coragem de mostrar o que achou no caminho - e nunca é fácil, nem alegre, nem irresponsável revelar o que se encontrou ou sonhou nas galerias da alma - é o que chamarei agora dignidade do poeta, e com ele a do homem. Porque é sempre de dignidade que se trata quando alguém dá a ver o que viu, por mais fascinante ou intolerável que seja o achado.
«O futuro do homem é o homem», estamos de acordo. Mas o homem do nosso futuro não nos interes sa desfigurado. Este animal triste que nos habita há milhares de anos, cujas possibilidades estamos tão longe de conhecer, é o fruto de uma desfiguração - acção de uma cultura mais interessada em ocultar ao homem o seu rosto do que em trazê-lo, belo e tenebro so, à luz limpa do dia. É contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge, é contra esta amputação no corpo vivo da vida que o poeta se rebela. E se ousa «cantar no suplício» é porque não quer morrer sem se olhar nos seus próprios olhos, e re conhecer-se, e detestar-se, ou amar-se, se for caso disso, no que não creio. De Homero a São João da Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Po a William Blake, de Bashô a Cavafy, a ambição maior do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo, parece dizer cada poema. Eis o homem, eis o seu efémero rosto feito de milhares e milhares de rostos, todos eles esplendidamente res¬pirando na terra, nenhum superior a outro, separados por mil e uma diferenças, unidos por mil e uma coisas comuns, semelhantes e distintos, parecidos todos e con tudo cada um deles único, solitário, desamparado. É a tal rosto que cada poeta está religado. A sua rebeldia é em nome dessa fidelidade. Fidelidade ao homem e à sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade à terra onde mergulha as raízes mais fundas; fidelidade à palavra que no homem é capaz da verdade última do sangue, que é também verdade da alma.

o que na estrada se cumpre e é imenso


















imagem
mcstalk

deviantart


O que abisma
é ser capaz de chorar cem vezes,
afastando os braços do corpo
porque, sem ele,
os joelhos caem no chão
e à terra tornam, tornados terra.
Ou ainda encostar os olhos às nuvens,
como estrelas que passassem pelos sentidos despertos.
Caem corpos, pelo medo,
caem mansos fogos no deserto,
caem tributos já perdidos,
caem corpos e lugares,
gente e coisas mais, como estilhaços e pontes.
Caem limos, também ondas,
a maré foi que desce e sobe pela escada
da nossa testa em sonhos.
Caem risos, mesmo gestos,
a noite invade os olhos como esconsos gatos os vãos,
escapando-se em redor, surpreendida,
caem paixões e outros tempos,
mil coisas sobre a terra escura,
as romãs e outras coisas de viver,
o homem em cuja pele adormecemos,
a luz apagada quando é tarde,
a voz quando cansada,
os dedos quando em sangue,
caem mil coisas, em pedaços,
do corpo que fazemos ambulante.
O que abisma é,
tendo fugazes os olhos,
ter olhos fugazes a relembrar as palavras,
sem pô-las de lado como coisas impolutas.
Entender o sol sobre a curva dos ombros,
afagando o que na estrada se cumpre e é imenso:
um grito, uma ruína,
uma unida janela.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

calei em mim a fúria dos acasos

alma de pássaro


















imagem quemas.deviantart

Cansada de me convencer que apesar do teu individualismo, estava a tal inevitabilidade a que nos submetemos e chamamos amor, pensei que, com todo o amor que sentia por ti, te iria suavizar e de alguma forma fazer parte do teu equilíbrio, tornando-me subtilmente indispensável. Nunca pensei enganar-me tanto. Mas só agora percebo que o teu amor por mim não foi uma inevitabilidade, mas uma escolha. Alguém que te chamou a atenção e que, um dia, decidiste que querias atravessar, com a intuição certeira de um animal selvagem que procura refúgio temporário, quando está cansado. Sei que não vinhas a fugir de nada, nem à procura de coisa nenhuma. Mas acho que, quando eras pequeno, te arrancaram uma parte de ti, e desde então ficaste incompleto e perdeste, quem sabe talvez para sempre, a capacidade de adormecer nos braços de alguém sem que penses no perigo de ficar na armadilha do carinho para todo o sempre.

que faz sede!

sem sobras...




















Dessa vez - Nando Reis

domingo, 3 de outubro de 2010

dores de amores














imagem
neslihans



Eu fico com essa dor
Ou essa dor tem que morrer
A dor que nos ensina
E a vontade de não ter
Sofrer de mais que tudo
Nós precisamos aprender
Eu grito e me solto
Eu preciso aprender
Curo esse rasgo ou ignoro qualquer ser
Sigo enganado ou enganando meu viver
Pois quando estou amando é parecido com sofrer
Eu morro de amores
Eu preciso aprender

[Luis Melodia]

para me iludir dum destino

Entrei no café com um rio na algibeira
e pu-lo no chão,
a vê-lo correr
da imaginação...

A seguir, tirei do bolso do colete
nuvens e estrelas
e estendi um tapete
de flores
a concebê-las.

Depois, encostado à mesa,
tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza
das árvores em torno
a cheirarem ao luar
que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir
A melodia sem contorno
Deste acaso de existir
-onde só procuro a Beleza
para me iludir dum destino.

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