segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O que fui em mim ainda será

















imagem
afihara
deviantart



Cheio de papéis
e guardanapos que não entendia,
com telefones que prometi ligar
no dia seguinte
e foram se despedindo sem acontecer.
Quantas chances tive de ser diferente?
Quis me expulsar e me tranquei mais fundo.
Dependia apenas de detalhes
e não me aceitei em troca.
Não mudei o mundo
porque não sabia
qual o mundo em que vivia.
Perdi amigos, ganhei amigos,
houve desencanto, houve engano,
falei que não mais faria,
era forte e não necessitava
disso e refiz e fiz.
A consciência não me fez prevenido.
O que fui em mim ainda será.
Não me acendi,
mas podes deixar,
eu me apago sozinho.

domingo, 29 de agosto de 2010

Esta Noite,



Esta Noite, Esta Noite

Tempo nunca é somente tempo
Você nunca conseguirá partir sem deixar uma parte da juventude
E nossas vidas foram mudadas pra sempre

Nunca mais seremos os mesmos
Quanto mais mudamos menos percebemos
Acredite, acredite em mim, acredite
Que a vida muda, que não estás confuso em vão
Não somos os mesmos, somos diferentes esta noite
Esta noite, tão esplêndida
Esta noite

E você sabe que nunca tem certeza
Mas tem certeza que poderias estar certo
Se tivesses te erguido perante a luz
E as fagulhas não se apagam, na sua cidade às margens do lago
O lugar no qual você nasceu
Acredite, acredite em mim, acredite
Na absoluta importância do agora
E se você acreditar não tem jeito esta noite
Esta noite, tão esplêndida
Esta noite

Crucificaremos os hipócritas esta noite
Faremos direito as coisas, tudo sentiremos esta noite
Acharemos um modo de idolatrar a noite esta noite
Os momentos indecritíveis de sua vida esta noite
O impossível é possível esta noite
Acredite em mim, como acredito em você, esta noite

sempre a ele que estas vozes pertenceram




















imagem
szymon sikora


Coloquemos um lenço sobre o rosto.
Não para o ocultar mas para que fique mais nítido o que vemos.
Essa há-de ser a margem das nossas feições,
a sua mais próxima brancura.
A respiração nem o toca sequer.
Outra brisa começava a atravessar o peito.
Ela vem agora ao nosso encontro sem qualquer ruido,
como se as mesmas folhas estivessem ausentes.
Sabemos há muito que é assim.
Depois o silêncio chega,
porque foi sempre a ele que estas vozes pertenceram.

sábado, 28 de agosto de 2010

dás-me o que sou

















imagem

nadyabird
deviantart


Por uma vez conta como o corpo se ajusta à superfície
das tuas palavras. Fala de um depois anterior, desse sono
demente na fissura da luz; do violento voo ou da ferida
cíclica, a ausência excedendo-se na pele quando a desoras
perfumas minhas mãos. Estende-se o calor aos lábios,
o Verão simula a duração no verso, circula a água, vigorosa,
no fundo do poço até desaparecer na cama muda.
Nada é o que parece, lembra-se o que se esquece e eu digo
os dedos descalços dissolvem em tua boca o mel à flor dos
destroços. Olha-me: deita o olhar em meu vestido, tira-o
num gesto ébrio e precipitado como a um prisioneiro,
os peixes sobem lestos no lago imoderado e a noite volta,
lenta, adormecida. Dou-te o que não tenho – a história
de um rio exultante a explodir na boca em versão romântica,
poema sem trágicos sulcos ou fala completa. E tu, tu dás-me
o que sou: metáfora doendo-se alto onde acaba o texto.

you can make it last, forever you

que mais pedir à vida



Emma Burgess- Your Love

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

no percurso da esperança.

























imagem

alltelleringet
deviantart


Por todas as razões que definem o rumo
do vento, ou o tornam cativo nas velas
de um barco sem destino,
sempre um sonho nos arrasta.
Não, não quero ser salva de previsíveis
transgressões a um código de rotinas impostas.
Sou jovem. Hei-de sobreviver ao meu próprio caos,
antes que a noite seja mágoa no poente
e, por dentro das manhãs, morram os pássaros
sufocados de tristeza.
Hei-de sobreviver, antes que, de boca em boca,
circulem as palavras prisioneiras da ilusão,
ou o rio que me corre nos olhos
esgote o seu caudal em litígio com a nascente.
Hei-de sobreviver, porque existe um outro tempo:
livre, povoado de rostos que antecipam
o percurso da esperança.
Existe, sim, um continente soalheiro,
ao alcance do mais íntimo pressentimento da vida,
onde, em asas de gaivota, nascem os homens
reconciliados com a morte.

a nitidez de um previsto silêncio



















imagem
mikko lagerstedt

terça-feira, 24 de agosto de 2010

o tempo que nos cabe

















imagem
vic4u.deviantart



É dentro da cabeça,
lá dentro,
que o tempo nos consome
e nos faz falta.
Não há chuva morna
nem sol
que nos aqueça, quando
nos falta o sopro,
a luz, a cega fé que nos mantém
despertos, quando
por fora, o corpo
já anuncia a noite
mais profunda.
Por isso,
é dentro da cabeça,
cá dentro,
para lá dos céus,
antes que o mar termine,
nesta imensa confusão
de meridianos
que nos dói e nos deslumbra,
que se aloja o segredo
indecifrável:
a cor, o som, a luz
que nos conforta,
neste intensamente breve
instante
que é o tempo que nos cabe.

Vou a mim própria ser-me














imagem
cristian bejenariu


Hoje vou levantar-me e vou estar contente com todos os meus actos.
Vou andar, vou correr, vou gritar
vou beber água, comer terra, vou comer o ar
e vou respirar, respirar.
Vou ter consciência do meu sangue
consciência de que o meu sangue desce
sobe, entra, sai do meu coração pontual
e no momento em que me cruza o cérebro enche meus olhos de terra.
Vou andar por mim dentro em visita.
Vou considerar todos os recantos, as comissuras, os favos, os ritmos, os
sonidos, os frémitos as pausas.
Vou estar contente com o meu corpo, com os meus gestos
vou estar contente com o meu rosto, satisfeita com o desenho dos dentes,
com a curva das unhas, com a espessura dos cabelos.
Vou ver-me ao espelho e achar que está bem e estar contente.
Vou olhar os olhos e ver a profundeza prismática da íris sem temor, vou
considerar a curva das pestanas, das sobrancelhas, a linha quebrada do nariz,
da boca, as fendas móveis dos lábios, a expansão do queixo.
Vou olhar o rosto e vê-lo, vê-lo mesmo, inteiro, corpo inteiro de uma
tangência outra.
Vou olhar-me toda e vou ver a terra com os seus continentes, suas ilhas, seus mares, seus rios, montes, lagos, florestas, prados, desertos, cavernas, fossos,
precipícios.
Vou olhar-me toda e ver a terra em órbita, nas minhas órbitas o sentido
do mundo, meus olhos globos húmidos, terra azul, retina do espaço.
Vou andar, vou correr, vou gritar, vou beber água, vou comer, comer o ar
e vou respirar, respirar.
Vou ter consciência.
Vou mastigar a vida com a boca, com todas as minhas bocas, minhas línguas,
meus dentes de dentro
Vou agarrar com todas as minhas mãos, tudo abraçar, tudo abranger, tudo
apertar, cerrar, cingir pela cintura e tudo comer, assimilar, em tudo entrar,
penetrar, tudo solver, engolir, em tudo penetrar
Vou penetrar-me, a mim própria ter-me, ter-me
Vou a mim própria abrir-me, meu próprio sangue dar-me, meu coração
palpar-me
Vou a mim própria ser-me, vou respirar-me, rir-me, vou-me a mim própria
abrir-me, a mim própria despir-me, vou nadar-me, correr-me, gritar-me,
a mim própria dançar-me, com meu sangue banhar-me, vou chorar-me,
com meu amor afogar-me, com minha angústia ferir-me, com meu sono
dormir-me, com meus sonhos minha esperança erguer-me, com minha loucura
endoidecer-me, pelas minhas veias fora vou gritar-me
Vou gritar, gritar até que eu vomite esta boca de terra que me aterra,
me enterra, me afunda
Vou gritar por ti oh Sigma
até que tu me oiças e possas chamar-me pelo meu nome!

domingo, 22 de agosto de 2010

do que se quer mais vasto





















imagem
gabriele gaspardis



toda beleza é sempre uma alegria.
eu sei, não foi bem isso que o John Keats
/disse,
mas cada língua escolhe as afeições
e imperfeições que lhe compete ser,
o ser da língua sendo o seu amar
o mar com cada qual sargaço seu
o espaço que se sonha na amplidão
do que se quer mais vasto.
um sonho vai fundando um outro sonho
até talvez um horizonte, ou não.
a palavra inaugura uma alegria
voa auspicia pássara
o que passou, o que ainda vai passar
o que se funda agora
e na hora da nossa vida-morte:
o resto só será palavra-além.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

quando o infinito se abre













imagem mod.

Alastair Magnaldo


Quando o dia nasce
o tempo aviva em nossos olhos a esperança
e amamos as formas pelo que elas são
como promessas à nossa fome.
Em nossas mãos o amor é como a vida,
e sabemos que em cada movimento
traçamos a história e o desejo,
alma secreta e longe que fitamos sempre,
quando o infinito se abre
azul sem termo ou céu sem nome.

que dizer deles?

imagem
littlemewhatever
deviantart
















Mais alguns passos e ela voltou a se colocar diante de mim: _Você talvez imagine que eu seja uma criatura má. Quase todo mundo imagina isto. É sempre fácil julgar os outros. Mas posso lhe garantir, Betty, que as aparências sempre estiveram contra mim, nesta vida só tenho sido má por inconsciência ou impossibilidade. - Calou-se um minuto, como se pesasse as próprias palavras. - É verdade que nunca me preocupei em ser exatamente boa, mas...
Então, a mim, que nunca havia pensado naquelas coisas, nem me detido ante problemas de tão grande profundidade, ocorreu um pensamento que quase subiu aos meus lábios na forma de um grito: que é a bondade? Como julgá-la, como aquilatar o seu valor diante de um ser impulsivo e cego como aquele que se achava ante a mim? Podia-me enganar, podia apenas estar cedendo ao sortilégio que a impregnava, mas não era isto que a redimia e a tornava diferente de todas as criaturas que eu conhecia?
_ Somos sempre cruéis quando queremos ser nós mesmos. _(Olhei-a: ela estava de costas para mim, uma sombra recortada contra o fundo ainda claro da janela.) - Mas os outros, os que nos impedem, os que nos tolhem o caminho... que dizer deles?
Voltou-se, e fixou-me com olhar intenso:
_Não, nunca fui má, De tudo o que me lembro é que talvez tenha sido um tanto fraca. - (Dentro de mim o pensamento continuava: fraca, quando toda ela só respirava decisão e ousadia? Sim, talvez fraca por não ter tido a coragem de ser absolutamente o seu impulso: uma vaga de voracidade e de morte.) - Certas coisas poderiam ter sido feitas de outro modo... ou evitadas... Mas quem realmente pode se vangloriar de nunca ter pecado?

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

isto nos baste





















imagem
martin stranka



Na ilha por vezes habitada do que somos,
há noites, manhãs e madrugadas
em que não precisamos de morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e
entra em nós uma grande serenidade,
e dizem-se as palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e
apertamo-la nas mãos. Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável:
o contorno, vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres,
com a paz e o sorriso de quem se reconhece
e viajou à roda do mundo infatigável,
porque mordeu a alma até aos ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.

e há tanto...























imagem

martin stranka

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

ser quem somos





















Imagem
Martin Stranka



É trabalhoso nos tornarmos quem somos e não o que a expectativa alheia quer que a gente seja. Exercer nossas singularidades. Escolher tendo como critério o que realmente importa e tem significado para o nosso coração. Priorizar a nossa satisfação, mesmo que, muitas vezes, isso implique interagir com as armadilhas que aqueles que não priorizam o que querem costumam criar para tentar minar a nossa força. Resistir a não compactuar com aquilo que faz com que nos desrespeitemos em troca de aliança e enganosa proteção. Buscar pertencimento, desde que ele não nos custe deixar de pertencer a nós mesmos. E nos afaste da nossa alma. E nos contraia a espontaneidade. E nos encolha a alegria.

É trabalhoso seguir esse caminho e não há retorno depois que enveredamos nele. Ele nos leva a descobrir nossos dons e colocá-los a serviço da vida, ainda que não se enquadrem na categoria do que costuma ser entendido como sucesso. A buscar o sensível tempero que permite que agrademos aos outros sem nos desagradarmos. A assumir responsabilidade pelas nossas escolhas e lidar com as dádivas e as dificuldades que isso envolve. A não ceder à tentação de atribuir a alguém, a Deus, ao Universo, o ônus pelos nossos eventuais prejuízos.

É trabalhoso desenhar o próprio caminho no mundo e se entender com a cadência, a intensidade, a espessura, dos próprios traços. Estar receptivo para se descobrir o que se quer desenhar e perceber, a cada trecho do desenho, o que a alma anseia e escolhe para o traço seguinte. Encher papéis inteiros com rabiscos que tentam expressar a própria idéia e ter coragem para retomar o fôlego, virar a página do bloco e reinventá-la, quando necessário. Ter coerência para não ceder à pressão e ao comodismo de copiar o desenho da maioria, quando o desenho da maioria nada tem a ver com o nosso. Ainda que riam do nosso desenho, ainda que tentem quebrar a ponta do nosso lápis, ter auto-amor suficiente para não desistir da própria obra.

uma vaga luz

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

o grito não acaba














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patrizio
battaglia


entre as gaivotas ali onde a palavra
não é música nem voz articulada
só grito sem apelo o elemento
entre rochas e mar
onde o eco não ouvido te assinala
o coito o perigo o parto e o silêncio
o mais é nada – a morte – ou é tão pouco
aí procuras os limites do corpo
o teu significado

não dialogas aceitas o rigor do homem
dele partes
não escutas as mensagens elas param
no cerco dos sentidos
cristal ignoras o sismo que te abala
a raiva que te rasga
espelho devolves o sol que não te aquece
para além da superfície

emerges na aridez suposta de ti
o que não sabes
circulas no pulso todavia incorruptível
das substâncias
germinas em metáforas repousas em potências
proliferas
não nas metamorfoses na memória
das partes da viagem

porque esse delírio não tem vasos
jamais o ultrapassas
pássaro homem labareda
o grito não acaba

[Teresa Balté - Mediações]
















imagem

raun.deviantart


A ascensão da noite é a memória
o recanto da pomba partilhado
a asa de outra ânfora o regaço
onde os labirintos que te acordam
repousam sob o lago

o horizonte ausente não abriga
a dissonância viva de um limite
o espelho cego aguarda não existe
o nó que te sufoca e reanima
o regresso do rosto à superfície.

[Teresa Balté - Metamorfoses]

domingo, 8 de agosto de 2010

desabafo de filho












Imagem
cauldfield
deviantart



Tento acertar meu relógio
pelo seu, parado, há tanto
com o suor do pulso, seco
a pulseira de couro partida
que ainda guarda algum sal.
Pai, a certeza de sua hora
me falta, e mesmo tendo
andado, não consegui chegar
a tempo, de pegar seu passo
emparelhar-me — servir
de companhia para sempre —
e passar à descendência
os firmes compromissos
pois me perdi pelo caminho.

querer e sentir





Albin de la Simone et Yaël Naïm - What a wonderful world

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

a quarta porta



















imagem
micha rainer pali


É a solidão
o que o coração procura,
como poderei não
saber o que não sei?

Estou cada vez mais longe de qualquer coisa,
regressarei alguma vez
a tudo o que há-de vir?
O que está atrás de ti

é a tua imagem
que o Futuro persegue.
Este é um lado de tudo
e o outro é o mesmo e o outro.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

MemÓrias






















imagem
anca cernoschi


Não reveleis o sonho. A luz do dia
fere demais a alma, e oculta
a face esquece a sua chaga rubra.

A dor, amordaçando, purifica:
que ela te dê no sangue o novo alento
para outros vôos de que sairás vencido

(mas entretanto vives...). E procura
haurir na solidão a graça, o prêmio
daquele instante puro, essencial

a que não chega o vão rumor do tempo
desfigurado e vil... E já liberto
conhecerás tua verdade inteira

ouvindo alguém, sem corpo nem memória,
segredar-te as palavras invisíveis
de que é tecida a Noite - Tua esperança.


Milton Nascimento-Caçador de Mim

terça-feira, 3 de agosto de 2010

sob o profundo instinto de existir






















imagem

katarinka

A sombra azul da tarde nos confrange.
Baixa, severa, a luz crepuscular.
Um sino toca, e não saber quem tange
é como se este som nascesse do ar.

Música breve, noite longa. O alfanje
que sono e sonho ceifa devagar
mal se desenha, fino, ante a falange
das nuvens esquecidas de passar.

Os dois apenas, entre céu e terra,
sentimos o espetáculo do mundo,
feito de mar ausente e abstrata serra.

E calcamos em nós, sob o profundo
instinto de existir, outra mais pura
vontade de anular a criatura.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

o instante iluminado















imagem
margherita vitagliano



Esculpida em silêncio,
sentada e sábia,
fita o horizonte da mágoa.

Ao seu lado,
o mar murmura
as sílabas do ocaso.

Ó beleza antiga e súbita:
sobre o seu ombro
o instante se debruça,
iluminado.

dos pontos que latem

























imagem

popsongs
deviantart

veios do corpo


















imagem

ursylla.deviantart


Meu carinho é sangrado.
Esse ai de pluma e pelica
não dão sonho no olho
não doem prazer nos poros
que não brotam de feridas.
Meu carinho é acidentado.
Cai aos borbotões
na minha ponta de faca
goteja lá um bálsamo
se lambe te acaricia.
Vermelho-bicho e meu carinho

sem hemorragia
eu não vivo.