sábado, 25 de dezembro de 2010

crer






















duchesse-2-guermante


Creio em mim. Creio em ti. Deus, onde mora?
Na vontade de crer que me consente
humano e ardente.
No meu repouso em ti, que me alimenta.
No que vejo e recebo, nesta vara
florida num deserto, em meu maná
de agora e de jamais. Saber-me hoje
tão digno do tempo que me mata
é arder-me em Deus, e este saber me basta.

estas ruas...

guardar

















Pablo Moran Jr


Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso, melhor se guarda o vôo de um pássaro
do que de um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

gimme sympathy

o que há em mim que és tu

sou fim sem princípio















SpareroomNinja



Não escutes a voz
que te chama.
A água é imóvel, sabes?
Extingue-se a história
e assim como se escapa o céu
dura apenas o que ignoro.
Sou fim sem princípio
e ainda princípio
de um inferno que arrefece.
E no canto mais denso
das palavras
nesse ténue espaço
de inflamado amor
e luar corrompido
sou noite que precede
o rosto da criança.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

uma dor como a minha















raginghearts


não acho que tu sejas a pessoa que me pode curar da minha dor, Yair,
mas se calhar, nesta etapa da minha vida, o que eu preciso não é de um médico,
mas de alguém com uma dor como a minha...

a raiz do destino

meu vício é














t0x1c d0lly



Meu vício
é vitalício: comer a Vida
deitando-a entontecida
sobre o linho do idioma.
Nesse leito transverso
dispo-a com um só verso.
Até chegar ao fim da voz.
Até ser um corpo sem foz.

sábado, 18 de dezembro de 2010

a terra escorre pelos olhos

um devaneio tão grande...















Ronaaa


Seria possível que um devaneio tão grande, tão forte, tão arrebatador possa ser contradito pela realidade? Ele se soldava tão bem à vida, à nossa vida. Dera tanto ser ao nosso ser imaginante! Fora para nós uma abertura para um mundo tão novo, tão acima do mundo desgastado pela vida cotidiana!

tirar a venda dos olhos















© Slucky


Como nós, pequenas criaturas, somos cegas. Meu querido, nós vivemos, na verdade, somente de contos de fada. Se vamos a uma jornada, quanto mais maravilhoso o tesouro, maiores são as tentações e os perigos a serem vencidos. E se alguém se rebela e diz: "A vida, nessas condições, não é suficientemente boa" - eu poderia dizer: "E, sim! A vida é boa." Não me entenda mal. Eu não quero dizer apenas que há "um espinho na carne". É um milhão de vezes mais misterioso o que eu sinto. Levei três anos para entender isso - para chegar a ver isso. Nós resistimos e ficamos terrivelmente amedrontados. A pequena embarcação entra num golfo escuro, amedrontador, e o nosso único desejo é fugir, voltar à terra firme. Mas é inútil. Ninguém nos escuta. E a figura sombria continua remando. Temos de permanecer sentados, quietos - e tirar a venda dos olhos. Acredito que o maior dos erros seja ficar apavorado. Oh, Perfeito Amor, arremessa longe o Medo. Quando olho para trás na minha vida, percebo que todos os meus erros aconteceram porque eu estava com medo.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

deixa a dor respirar em segredo

te cubro de flor...

no sulco da mão




Sol desperto
não me verás partir
punho cerrado
o orvalho da noite
no sulco da mão
e já rouco
do que calei
rego o verso amargo
gume e aresta
é teu e o fiz
é hino de marcha
sem tambor nem fanfarra
pra dar a cadência
ao descer a ravina
com o pouco que resta
o cantil de cicuta
e o que já esqueci




ssuunnddeeww

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

viver & sonhar - sonhar & viver




















Bob Marley - Three Little Birds

Esse mar que só há depois do mar

















deseriedouleur


[…]

Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.

Pudesse eu ser tu
e em tua saudade ser a minha própria espera

Mas eu deito-me no teu leito
quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
quando ansiava ser um sonho teu.

E levito, vôo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.

Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.

e por fim sempre

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

o outro lado de mim

eu canto a ausência de mim mesmo















iNeedChemicalX


Eu canto a ausência de mim mesmo
Se eu sei que essa ausência é eterna desde já
porque será sempre continuamente defenitivamente
não quero ser mais que o náufrago dessa ausência
Que presunção se tu dissesses aqui estou para sempre
É verdade que eu o vejo que as janelas estão abertas nas margens do mundo
Assim eu quero que o meu espírito se torne ondas de energia e de luz
e eu sinta terra voltada para o espaço
e consiga ter a sensação de ser espaço no espaço
É assim meu desaparecimento o meu côncavo
recuo para o começo do mundo
para uma porta destinada a abrir-se numa lenta génese
para ser substância palavra túmulo do meu desejo vegetal
que canta o nada sempre o nada sem nome sem ninguém
porque eu seria ninguém sem nome sombra definitiva
e se abrisse os olhos para o universo veria todos os olhos esquecidos
tantas imagens sem nome tantos gestos sem mãos
eu poderia sentir que a minha vida era a lenta descida para a morte e ainda
perder-me-ia no deserto infindável do meu ser
Mas que importância teria estar vivo ou estar morto
se tinha morrido em vida tantas vezes
e se estivesse vivo teria que morrer ainda mais e sempre
Eu canto a ausência de mim mesmo
porque até a árvore morre no fundo da árvore
porque começamos a morrer logo que nascemos
e fui sempre um hóspede um vento de uma sombra
a tristeza de desaparecer no meio do caminho
sem vislumbrar o horizonte no horizonte
porque à medida que vivia a morte tornava-me mais abstracta do que a vida

[A. Ramos Rosa]

melodia


























Stateless - Bloodstream

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

a hora de voar...

gravity

Como se a tristeza não enchesse o horizonte























© Liviu Burlea

Perante a morte estamos sempre sozinhos.
Umas vezes de pé, desassombrados.
Outras deitados em concha, no soalho.
Umas vezes dela falamos, outras não.
Nessas fingimos ter a fala neutra e esquiva,
Como se a tristeza não enchesse o horizonte.

Sozinhos perante ela certo é que estamos.
Dobramos o riso na curva dos caminhos,
Juntamos mãos a outros gestos já traçados,
Calcamos passos sobre a terra
E beijamos, nos nossos filhos,
A memória que, nossa, não teremos.

Traço as letras. Ao traçar as letras,
Sei de que falo.
Entretanto, nunca o saberei.

domingo, 12 de dezembro de 2010

o nome da ferida

como inavegáveis são os rios






















ineedchemicalx

Repara. Há um rio correndo entre as falanges dos dedos. Navegá-lo-ás solitário, porque solitárias são as navegações humanas, todas, como inavegáveis são os rios, todos os rios da terra, anteriores ao mar. Onde tu vês a foz é a nascente que vês. Que os rios, como tudo o que é fluido e movente, nascem ao contrário.

uma filha do sol















bittersweetvenom

Quero entrar nele [mundo exterior], ser parte dele, viver nele, aprender dele, perder tudo de mim que é superficial e adquirido, para me tornar um ser humano natural e consciente. Quero, pela compreensão de mim mesma, compreender os outros. Quero ser tudo o que sou capaz de ser. (...)
Quero ser uma filha do sol. Sobre ajudar os outros, sobre portar uma luz, e etc., me parece falso dizer uma única palavra. Deixa ficar assim. Uma filha do sol.
Então, quero trabalhar. Em quê? Eu quero tanto viver, que trabalho com as mãos, a sensibilidade e o cérebro. Quero um jardim, uma pequena casa, gramado, animais, livros, quadros, música. E sobre isso, sobre a essência disso tudo, quero escrever, quero estar sempre escrevendo. (...)
Mas cálida, ávida, vivendo a vida - estar enraizada nela - para aprender, para desejar aprender, para sentir, para pensar, para agir. É isso que eu quero. Nada menos.

estou vivo e escrevo sol






















© Mal Smart


Eu escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol

Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever e sol

A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida

Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

se isto é isto...

estado de alma

entrar na realidade















© Angela Bacon-Kidwell


Em luta, meu ser se parte em dois. Um que foge, outro que aceita. O que aceita diz: não. Eu não quero pensar no que virá: quero pensar no que é. Agora. No que está sendo. Pensar no que ainda não veio é fugir, buscar apoio em coisas externas a mim, de cuja consistência não posso duvidar porque não a conheço. Pensar no que está sendo, ou antes, não, não pensar, mas enfrentar e penetrar no que está sendo é coragem. Pensar é ainda fuga: aprender subjetivamente a realidade de maneira a não assustar. Entrar nela significa viver.

e a lágrima nos lembra:

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Cry me a River

pudesse...


















t0x1c d0LLy


Pudesse eu tocar
teus cansados ossos
quando o mar
se encrespa.

Pudesse eu escrever
com as mãos
o olhar que lê
teu poema feito.

Pudesse eu ser visão
ou melancólica música
noite subterrânea
ou fulgurante desejo
para que entrasses
veloz em minha tristeza
como um espírito cansado
à procura do mundo.

é minha a sombra






















saiaii.deviantart


Não há quem me negue a dor
a mim e a uma já morta escrita.
Jamais verás suportar sem desdém
o que é só teu no supérfluo bem.
Não há dolentes palavras que a chorar
te convidem sem se instalar o amor
- nada o nega nem o prazer mais forte
nem a morte que o pranto sacode.
Não temas a clara fala dos lugares cheios
que por trás dos espectros acodem.
A seu tempo resvalará o encontro
em nossos passos, piedade inquieta, tribulação
de um abraço, antigo verso ou chaga lembram
como padece meu corpo, água ou barca
viajando veloz no seu empenho de júbilo.

É minha a sombra, concedo-ta, de rosto baixo e tímido riso.
É tua em cada gota de sangue, bem como o seu rasto.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

não te salves






















© Villi



Nouvelle Vague - Bizarre Love Triangle

Não fiques imóvel
na beira do caminho
não congeles o júbilo
não queiras com apatia
não te salves agora
nem nunca
não te salves
não te enchas de calma
não reserves do mundo
só um recanto tranquilo
não deixes cair as pálpebras
pesadas como julgamentos
não fiques sem lábios
não durmas sem sono
não te penses sem sangue
não te julgues sem tempo

porém se
apesar de tudo
não podes evitar
e congelas o júbilo
e queres com apatia
e te salvas agora
e te enches de calma
e reservas do mundo
só um recanto tranquilo
e deixas cair as pálpebras
pesadas como julgamentos
e te secas sem lábios
e adormeces sem sono
e te pensas sem sangue
e te julgas sem tempo
e ficas imóvel
na beira do caminho
e te salvas
então
não fiques comigo.

detrás desta máscara

é tudo sem sentido?

Saber quando é a sua vez de cantar















johnny joker


Natasha Bedingfield - Somewhere Only We Know

Não importa se é a cantiga de uma lâmpada ou a voz da tempestade, a respiração da noite ou o gemido do mar que o cerca, sempre vigia atrás de você uma vasta melodia, tecida de milhares de vozes, em que apenas de vez em quando há espaço para seu solo. Saber quando é a sua vez de cantar, esse é o segredo de sua solidão, como é a arte da verdadeira interação: deixar-se cair das palavras imponentes para entrar na melodia única, compartilhada.


ímpeto de vôo

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

sabor original






















© Liviu Burlea


[...]
ó sabor antes de mim,
ó quando eu não sabia e tudo em mim sabia,
ó noite, ó espessura, ó outra vez a noite,
outra vez esse sabor submerso, esse sabor do fundo,
esse sabor bem longe, esse sabor total,
esse sabor onde sinto a terra num só gosto,
esse sabor original, fonte de todo o sabor,
surto submerso,
ó único sabor.

rosa dos ventos

espera sem temer que o universo se explique


















© laauraa


As palavras estão com seus pulsos imóveis.
Caminharia a morte - e sempre o mesmo peso
e a mesma sombra fechariam meus pedidos.

Mas o sangue do amor tem sonos e silêncios,
sabe do que aparece apenas porque passa:
espera sem temer que o universo se explique.

Mando-te um som de vida, em meus rios de espanto,
solitária de mim, repentina exilada,
com os enigmas ardendo entre inconstantes ondas.

Nada somos. No entanto, há uma força que prende
o instante da minha alma aos instantes da terra,
como se os mundos dependessem desse encontro,

desses prelúdios sobressaltados.