sábado, 30 de julho de 2011

percebi tudo: nada
























Johann Smari


Eu não sei o que diga
se me falam na rua.
Não estou preparado
para conversa no ar.

Não sei fazer visita
e dizer as amenas
frases que toda gente
traz no bolso da calça.

A mentira é difícil
e não por ser mentira:
porque exige da gente
a arte de inventar.

A alegria é difícil
de se manifestar,
não por ser alegria.
Porque é forte demais.

O sofrimento é fácil
de se exigir na face.
Tudo dói, tudo queima
sem fósforo aparente.

Os parentes me falam
uma língua só deles.
Eu entendo a linguagem
das pedras sem família.

Tudo é mais complicado
se se tenta explicar.
Um gato me fitou,
percebi tudo: nada.

que eu corra pelo universo a toda a estrela


























DorOthY-ShoEs


[...]

Apenas quero saber porquê
Porquê
Porquê
Sou protesto e rasgo o infinito com minhas garras
E grito e gemo com miseráveis gritos oceânicos
O eco de minha voz faz ressoar o caos

Sou desmesurado cósmico
As pedras as plantas as montanhas
Saúdam-me As abelhas os ratos
Os leões e as águias
Os astros os crepúsculos as auroras
Os rios e as florestas perguntam-me
Então como tem passado?
E enquanto os astros e as ondas tiverem algo
para dizer
Será pela minha boca que falarão aos homens
Trazei-me uma hora para desfrutar a vida
Trazei-me um amor pescado pela orelha
E deixai-o aqui a morrer perante meus olhos
Que eu role pelo mundo a toda a brida
Que eu corra pelo universo a toda a estrela
Que me afunde ou me levante
Lançado sem piedade entre planetas e catástrofes
Senhor Deus se tu existes é a mim que o deves

sexta-feira, 29 de julho de 2011

lean on [me]

minha alma é feita de água

















iKate


[...]

Me debruço na varanda e a altura me tonteia.
Sabem o que descobri?
Que a minha alma é feita de água.
Não posso me debruçar tanto.
Senão me entorno e ainda morro vazia, sem gota.

se deve morrer de amor














tokarchuk
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[...]

agora tu eras como o tempo
despido dos dias, por fim
vulnerável e nu, e eu
era por ti adentro eternamente

lentamente
como só lentamente
se deve morrer de amor

quinta-feira, 28 de julho de 2011

silêncio perfeito

























ao fim do dia sentas-te em silêncio
e pensas o pensamento;
pensas o poema, o acto de pensar
e o silêncio, o teu próprio silêncio;
e pensas no silêncio daqueles que talvez
devessem ter dito alguma coisa
num determinado momento da tua vida;
porque o silêncio só é perfeito para quem quer dizer,
não para quem quer ouvir

quarta-feira, 27 de julho de 2011

ninguéns
























Marhiao
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[...]

Toda vida acreditei:

amor é os dois se duplicarem em um.

Mas hoje sinto:

ser um é ainda muito.

De mais.

Ambiciono, sim, ser o múltiplo de nada.

Ninguém no plural.

Ninguéns.


[o fio das missangas]

devaneio

quando me cubro do teu rosto


















[...]
Mas eu, quando me cubro do teu rosto
e sou somente de água e fogo feito,
melhor ainda te conheço e quero,
e nada no teu corpo me é alheio:
em cada grão de pele te desejo,
em cada ruga leio o meu destino.


[Duende]

domingo, 24 de julho de 2011

onde não escrevo deixo a luz apagar

























ayla es deviantART

As luzes engrossam o ar da noite
e logo um inferno se antevê numa estrela.

É fácil ao ouvir a chamada de um velho amigo
ir de encontro ao pedido e aceder
mil vezes aceder ao vício de articular o horizonte
por palavras que andam de terra em terra
em vida de circo.

Tapo a boca com um sorriso
reverto o reverso no seu lado único
e estoura-me um vulcão pequenino
com água quente e solidão à porta
da hora começada.

Molha-se o papel a história segue em parte
onde não escrevo deixo a luz apagar.

amor vencido...

























salihagir

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[...]
tu disseste
o nosso amor
foi desde de sempre um menino morto
só às vezes parecia
que ia viver
que nos venceria
mas nós dois fomos tão fortes
que o deixamos sem sangue
sem seu futuro
sem seu céu
um menino morto
só isto
maravilhoso e condenado
talvez tivesse um sorriso
como o teu
doce e fundo
talvez tivesse uma alma triste
como minh'alma
pouca coisa
talvez aprendesse com o tempo
a desdobrar-se
a usar o mundo
mas os meninos que assim vêm
mortos de amor
mortos de medo
têm tão grande o coração
que se destroem sem saber
tu disseste
o nosso amor
foi desde de sempre um menino morto
que verdade dura e sem sombra
que verdade fácil e que pena
eu imaginava que era um menino
e era somente um menino morto
agora o que falta
só falta
medir a fé e que lembremos
o que poderíamos ter sido
pra ele
que não pode ser nosso
o que mais
e quando chegue
um vinte três de abril e abismo
tu onde estejas
leva-lhes flores
que eu também irei contigo...


[o amor, as mulheres e a vida]

sábado, 23 de julho de 2011

esse fundo de deserto
























miamojolene
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Nos dragoeiros bagas que ninguém esmaga
a morada as janelas os jardins
vagueiam abandonados

De repente ficamos tão sós
que pela solidão unicamente se conta
a nossa vida

Em qualquer parte buscamos um rastro ardente
pela menor fenda pode olhar-se a fonteira
e às vezes é aterrador
esse fundo de deserto


[a noite abre meus olhos - fronteira]

quinta-feira, 21 de julho de 2011

sem se ferir no esplendor breve do amor

































anca28

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se um dia a juventude voltasse
na pele das serpentes atravessaria toda a memória
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida

sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras
porque só aquele que nada possui e tudo partilhou
pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amor

depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projectos nem ambições
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpo

mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim
com suas raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu
humilde e cansado piloto
que só de te sonhar me morro de aflição


[O Último Coração do Sonho]

sê lenha!























veftenie
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Enquanto a faca corta o alimento,

a boca atrasa o corte, o paladar,

a sorte, a criança devora o que tens

e a vontade pede-te: «sê lenha».

Anda, suporta teu corpo de ferida

cicatriz ou nome, és esqueleto bravio

carne e voragem, sino que ressoa,

te ensurdece e desmorona.

Do mar, a terra, da terra a água,

do fogo, o ar, só é exterior o interior

que se evapora em solução iodada

e te abafa no fumo metálico e molda

uma sombra, o ombro, a mão. Mas olha,

vê, escuta o som impaciente da lenha

afundada no sal, conta a história,

repete a única história que te faz viver.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

where we gonna go from here

a perfeição ou a incerteza
















muratalper
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Um nome arde tanto
de repente todos os caminhos parecem de regresso
a vida por si mesma não se pode escutar demasiado
a vida é uma questão de tempo
um sopro ainda mais frágil

a rapariga desce à pequena praça,
compra uma flor para ter na mão
uma forma intemporal de conservar
a perfeição ou a incerteza

[A noite abre meus olhos - A rapariga de Providence]

segunda-feira, 18 de julho de 2011

amor? amar?



















mymadeleine
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Amor? Amar? Vozes que ouvi, já não me lembra
onde: talvez entre grades solenes, num
calcinado e pungitivo lugar que regamos de fúria,
êxtase, adoração, temor. Talvez no mínimo
território acuado entre a espuma e o gnaisse, onde respira
- mas que assustada! uma criança apenas. E que presságios
de seus cabelos se desenrolam! Sim, ouvi de amor, em hora
infinda, se bem que sepultada na mais rangente areia
que os pés pisam, pisam, e por sua vez - é lei - desaparecem.
E ouvi amar, como de um dom a poucos ofertado; ou de um crime.

De novo essa vozes, peço-te: Esconde-as em tom sóbrio,
ou senão, grita-as à face dos homens; desata os petrificados; aturde
os caules no ato de crescer; repete: amor, amar.
O ar se crispa, de ouvi-las; e para além do tempo ressoam, remos
de ouro batendo a água transfigurada; correntes
tombam. Em nós ressurge o antigo; o novo; o que de nada
extrai forma de vida; e não de confiança, de desassossego se nutre.
Eis que a posse abolida na de hoje se reflete, e confundem-se,
e quantos desse mal um dia (estão mortos) soluçaram,
habitam nosso corpo reunido e soluçam conosco.


[nova reunião - estâncias]

do vermelho que sobra do teu beijo

o meu coração está nas pontas dos dedos




















[...]
Gosto de ser apenas a mochila
quanto menos tenho...
mais me apetece dançar,
rodopio ao som da voz de cordas,
habito uma teia enegrecida de versos,
fui a presa voadora do insecto mágico,
hoje sou um sonho aceso de liberdade,
o meu coração está nas pontas dos dedos
com-que-toco-com-que-escrevo-com-que-afasto.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

dois passos ao lado da própria respiração



























lenagnl
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Dois passos ao lado
As ruas que percorremos nunca nos
levaram aos destinos marcados.
Curvam sempre antes das ombreiras floridas
das janelas onde se confessam os
dias mal bordados
e seguem paralelas à solidão
rectilínea dos corpos.

Continuamos a seguir com elas
andarilhos descentrados
dois passos ao lado da própria respiração
como uma sombra
à procura de um ponto estrangeiro
de coincidência e de
um lugar onde morrer de véspera.

irei eu em todas as minhas mãos
























Scabeater
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Irei eu em todas as minhas mãos
pégasos e ventanias
o corpo preso por um frio gentil
o corpo a tilintar de sonhos.

Serei eu o que ele for
na cavalgada.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

algo na cratera do olhar























miamojolene
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Algo na cratera do olhar,
aí é onde vive o meu querer
e vive independente da forma,
um vulcão adormecido que acorda sozinho
e não porque alguém junto acendeu um fósforo.
desperta no momento em que os personagens aparecem
e o teatrinho das sombras começa alegremente.
Quando termina o veludo encarnado
é cor e lágrimas e sangue e árvores
e sempre o branco sujo do impossível
a acenar do fundo da gaveta.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

a falta...

palavras como acto inevitável


























No gesto quotidiano do beber das plantas
está cada palavra que para ti escrevo,
para ti e para todos.
A ponta da língua que se queima enquanto faço café,
quando seguro a porta com um dedo
e as unhas batem no azulejo
com a raiva do que se sabe indefinidamente postergado.
Mais tarde não mais passará o tempo;
quando nos levantarmos pela noite
com uma sensação de medo atrás das orelhas,
fingindo que dormimos,
pensando em coisas maiores.
Mas agora enchem-se-me as linhas de palavras
carecendo de um mínimo de traçado,
uma iluminação remota
para ser o que são:
razões saturadas
que se diluem aos quatro cantos.
Apenas sou capaz de saudá-las,
com este odor a cascalho que sempre me corta,
com a vontade ilógica de ficarmos sentados
defronte os lamentos dos outros
sem saber como tocar-lhes,
sem saber o que dizer aos seus vazios
que têm a medida e a exactidão dos nossos,
as mesmas mortes e os mesmos desastres
embora pintados com outra gama de tonalidades.
Tudo é um choque,
a vergonha de acreditar
que somos donos do nosso arbítrio.
Demoramos o tempo de uma subtracção
para que não fiquem as mãos tão inúteis
perante os filhos
que saberão, afinal, que não sabemos nós
como tudo sucedeu,
belíssimo que estava o momento
quando nos trasladámos para a vida.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

ardes em silêncio
























aleksandra88
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Disseste que quando
ardias em silêncio


ardias por protesto


confesso que no momento
não compreendi a razão


mas verifiquei que quando
começam a falar há muitas
pessoas tão caladas


Estavas
mais que certo


agora comigo
a alargar-te
as costas
ardes em silêncio


continuas a travar
essa luta inglória
de até conseguir
que se diga o que se diz



[imolação]

segue adiante, menino...


























Segue adiante, menino
qual seja o caminho
sem perder a certeza
que não temos destino
nem queremos chegar

Segue adiante, menino
já que o passo consola
e a beleza te toca
nem que seja uma vez
com o dedo do Deus


[para meu filho matheus, nesta data querida]

domingo, 10 de julho de 2011

a curva sussurrante que não conseguimos























miamojolene
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Talvez o que mais intensamente buscamos
o larguemos em seguida
num alheamento maior do que é habitual
o amor, o fio de aço, a curva sussurrante
que não conseguimos

Poisamos furtivamente
no rebordo de outros mundos
em comovente descoberta
com milhões de pontos de fino borbado
que se movem e resvalam
indiferentes à crueldade



[a noite abre meus olhos - suite]

desertos

sábado, 9 de julho de 2011

diante da noite sem fim




























" First we fell, then we fall "
James Joyce

[...]

Aperto contra ti a infelicidade dos meus braços
a navalha não do jogo, mas do rito
Tu porém inacessível
ardes entre a dupla folha
de ouro



[a noite abre os meus olhos - Jacob e o Anjo]

sexta-feira, 8 de julho de 2011

arrancado aos braços

regresso ao sono onde deixei os pássaros

















valentina
vallone



nunca percebi muito de vozes
mas se te ouço

mesmo quando é difícil entender
cada palavra

faço do corpo um espaço de silêncio

escrevo o que ainda conheço
nomes de ruas, pássaros, árvores
monólogos de quem ainda fala alto
é a minha voz ou a tua?
como se tudo fosse uma metáfora sem fim

lá fora a chuva confunde-se com gestos
falamos do tempo, ponte entre o silêncio e o nada

ouve, quando não fores capaz de falar, toca-me

há várias maneiras de começar o dia
quando acordo fumo um cigarro

coso silêncios à pele
num quarto inteiro de palavras vazias
que se repetem como rituais

durante semanas ensaiei regressos
apesar das paredes vazias
não deixo de fingir que não estou só

depois de te dizer que a melancolia já não se usa
fumo um cigarro e invento um abandono

foram várias as vezes que escolhi a tua presença
para que o que escrevo tivesse corpo
(escrevo) gestos num livro de quedas
por entre a paisagem doméstica

cheia de vazios regresso ao sono
onde deixei os pássaros

domingo, 3 de julho de 2011

os incêndios




















djoe
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Não devias empurrar fogo tão solitário
sob os umbrais de uma morada
nos carreiros que vão dar aos montes
sairás ainda em súplica
quando os incêndios ignorarem a ameaça
da tua vassoura de giestas

a sombra uma vez avulsa
não retorna a mesma

não despertes o que não podes calar


[a noite abre meus olhos]

para chegar a ti...