sexta-feira, 29 de abril de 2011

a sabedoria é para os barcos













© Sonny Kreutz



A sabedoria é para os barcos
sob as pontes da noite,
a alma, o oiro.
Aqui dormiria, à distância singular
de um beijo, um lençol de água,
um travesseiro de cuidada pedra.
Outras coisas da infância, mas devagar,
outros corpos a penumbra percorrendo,
a poeira da luz espiando os sapatos,
a navalha chamuscada.

Também eu herdei a perigosa ilusão
da bicicleta, um silêncio
danado por mulheres,
pelo ardor cristalino do álcool,
no limbo mais rasgado do mundo;
o segredo tão natural da pintura
na profecia azul dos mosaicos,
no carvão amargo da noite;
certos vestígios pelo tráfico outrora florescente:
sedas, frutos, tabaco, pequenos tesouros,
caixinhas de laque, sandálias
gastando, dia após dia, a mágoa.

Que posso fazer pelas pedras desta praça senão
cobri-las de aves, trapos, moedas
e pela poalha do crepúsculo seduzir os vitrais,
os óleos santos, o sândalo,
o bolor intenso das paredes?
Cambiar a chuva pelos claustros do vento, o vidro
de oficiante fogo, como em Murano a família Barelli?

Que poderei comprar para o vazio
deste anoitecer? um pouco do meu sol?
daquele mar, um punhado de areia?

use somebody

memória ou esquecimento





















O perfume da rosa envolve por ser efêmero,

qualquer paixão que vale a pena é suicida.

E ele se perdeu mais uma vez, pra descobrir que todo o corpo é feito de matéria e

não há luz além daquela que a vontade projeta.

Mas não falemos de empreitadas frustradas,

a experiência é um fim em si mesmo,

quem perde termina mais rico que quem toma.

No fim, o ser é feito de memória assim como de esquecimento,

um caminho não trilhado nega ambos.
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daquilo que fica...




Paramore - The Only Exception

quinta-feira, 28 de abril de 2011

assim se desfia a alma





















Kleemass
DeviantART




[...]

Entre paisagens assim se desfia a alma,

desaparece e volta, aproxima-se e parte,

estranha para si própria, inabarcável,

certa uma vez e logo incerta de existir,

enquanto o corpo está, está e está

e não tem lugar para onde ir.
.
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.

tudo é memória...


















[...]

Vejo asas, sinto os passos

de meus anjos e palhaços,

numa ambígua trajetória

de que sou o espelho e a história.

Murmuro para mim mesma:

"É tudo imaginação!"



Mas sei que tudo é MEMÓRIA...

.
.
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a chuva a morder o chão




















bulleblue
debiantART



Espanta-me que estes olhos durem ainda,

que as suas pedras molhadas

se tenham demorado tanto a reflectir

um céu extenuado

em vez de aprenderem com a chuva

a morder o chão.

.
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quarta-feira, 27 de abril de 2011

como folha de álamo




Pedi às vagas

altas e sucessivas

que fossem como

folha de álamo;

que fossem sobre o coração

carícia ou só

memória de lábios.




Cat Power - How can I tell you


czerwonaczekolada

mad world

há música diante do abismo














© Andre



Há uma música em mim, isto é certo, e contudo pergunto-me que significa este prazer sem esperança. Há música diante do abismo, sim, e, mais longe, outra vez o sino da neve e, o meu ouvido ávido sobre a caldeira das mágoas,
mas


que significa por fim


este prazer sem esperança?

[ardem as perdas]

a cegueira a que me atrevo

















eternityechos
deviantART





Há um breve sufoco cada vez que toco

essa face menos perceptível da vida,

onde a verdade me assusta, de tão despida,

e a ânsia de respirar, vital, me traz logo

à superfície, num mergulho que não forço,

em salto irresistível para este ar poluído

da inútil transparência que agora respiro,

sabendo tão bem que apenas engano a morte.

Assim é a verdade: tão clara e tão escura,

tão confusa, que sempre que a encontro

quero perde-la neste mesmo instante. E nunca

chego a conhecê-la. Na dúvida que perdura,

embarco sem sair de terra. E nada levo,

senão cegueira covarde a que me atrevo.
.
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terça-feira, 26 de abril de 2011

cansa-me ser...

















Rebecca Cairns



Cansa-me ser. A chaga inumerável
de mim cintila, sem palavras, úmida
fonte rubra do ser, anseio e tédio
de prosseguir, inabitada, viva.

Prosseguir. Ai, presença ignorada
do ser em mim, segredo e contingência,
espelho, cristal raso, submerso
na eternidade do existir, tranqüilo.

Cansa-me ser. Ai chaga e antigo sonho
de auras transmutações e vidas outras
além de mim, além de uma outra vida!

Mas amolda-se o ser. Prende-me a essência
(raiz profunda e vera) a imutável
condição de ser fonte e ser ferida.

[poesia reunida]

terça-feira, 19 de abril de 2011

abrigada










lunariya
deviantART




Vou providenciar uma alma
onde você possa estar abrigada.


Uma alma que se espraie em
planície, e que caiba num abraço.


Uma alma que de si mesma não
se desfaça. Nem a si se apegue.


Uma alma que limpe os óculos
pela manhã e mire a distância do
vale. E que de si não distancie.
Mas voe.

dorme em minha reza

segunda-feira, 18 de abril de 2011

sem luta ou luto





















NuclearSeasons
DeviantART




Se eu recitei alguma coisa
frugal, por estar ébrio... Se
eu deixei cair da boca algum
verbo infiel... Se eu magoei a
quem por bem nunca
mereceu...


Aqui mesmo deixo minhas
desculpas. Abro mão do que
era meu. Exponho as próprias
vísceras.


Sorvo bebo campeio alternativas
às minhas tocaias e investidas.
Abdico.


Deixo de perder-me em
meus enleios. Visto o hábito.
Multiplico os votos.
Retiro-me.


Sem luta ou luto.

embargados nós




















NuclearSeasons
DeviantART





Voltas à margem de pensamentos antigos
Idos os dias da luz diáfana

Afogas afagos em canções desesperadas
Já paradas as mãos no piano

Invadem-te os sons
É a aragem
Cantas
Encantam-te
As notas selvagens
Desse pranto

Voltas à margem de pensamentos antigos
Idos os dias da voz embriagada

Embargados nós

domingo, 17 de abril de 2011

a um passo

volta a sonhar-me agora...














© Sonny Kreutz



Volta a sonhar
que em teus pés
servem meus sapatos.


Não temas o tempo
que passaste
sem roçar pela minha sombra.


Teu cárcere de palavras
não me importa,
meus sapatos
estão cheios de ti,
pertences-me quando caminho
pela tua memória suicida
de amante condenado
a perpétuo desamor.


Volta a sonhar
que sou eu quem te olha
no espelho do banho
e teu abraço faz-me ser
idêntica a ti.


Não temas o tempo
que deixaste passar
cada vez que meus lábios
evocavam teu rasto
de pequeno segredo
guardado num relógio
com forma de brinquedo.


Volta a sonhar
que nos cruzamos
num deserto cheio
de lagartixas e abacates,
transformando-se as manhãzinhas
no nosso último baile.


Volta a sonhar-me agora
que estás velho
e eu me atrevo a buscar-te
sem pedir licença
porque foste o meu corpo
e tuas cadeias também me doem a mim.

sábado, 16 de abril de 2011

espantoso é o caminho


















Sou muito mais [mas muito] do
que o assombro que a si mesmo
se percebe. Sou mais-do-que-eu,
em verdade. E sei disso. Não se
espante.

Espantoso é o caminho
que a mim me
trouxe.

Passo despetalado que não é flor.
Fulgor que não é sol. Calor que não
é fogo. Olhar que é gesto atravessado
pelo giro: o visto-e-o-vendo. O vendo
-e-o-visto.

Não se espante pelo
olho: espantoso é o
trajeto.

despretensiosamente





That we can baby
We can change and feel alright

a vida

enquanto passo existo




















anderton
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As coisas não acabam
quando as deixo,
mas tudo o que nelas deixo
acaba.
Cada passo dado ao chão
desmorona e esquece
a terra já pisada.
Só enquanto passo existo
depois
sou nada.

vadiando a verdade

acrobacias

























Sentados em Trafalgar Square
no intervalo de amigos
com o tempo entre as mãos
treinávamos o nosso inglês
num inquérito de revista
com Francis Bacon na capa
que perguntava:
qual dos membros
- superiores ou inferiores -
preferíamos perder
(esta ablação em língua estrangeira
tornava-se indolor, quase anestesiada)
respondeste: os braços
as pernas conservá-las-ias
como a liberdade de poder andar
respondi: as pernas
não queria ver-me
impedida de abraçar.
Assim juntando as nossas
perdas
eu abraço-me a ti
e peço-te anda, mostra-me o mundo
e quando nos cansarmos
abraçar-me-ás, então, com as pernas
e eu
andarei com os braços.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

orbitando


















Sempre irás perder. É
mais-que-óbvio. Não há
dedo ou tato que alcance o
teto.


[Ou centro].


E os gestos, não-suaves,
nem são tão incisivos.
Facilite a
frase.


Orbite.


A luz não é tão
perto.

cabia nos teus olhos















MecuroBCotto


A verdade cabia nos teus olhos, mas estes fecham-se com um movimento que se torna simples. Apenas a espuma era trazida pelas ondas e outros vestígios chegaram de um dia humedecido; depois, vimos como se deteve e ficou de novo submersa. Mas é dela que talvez se receba um aviso. Ainda hoje a esperamos quando junto de nós finalmente se encontra uma nova imagem abandonada pela proximidade da noite. Sabias que a verdade é um aviso?

em certas tardes...

























[ardem as perdas]

quinta-feira, 14 de abril de 2011

não quero ser o meu próprio estranho





















PinkShit
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Talvez me suceda em mim mesmo. Não sei quem mas alguém matou
em mim. Também ontem pressentia a desaparição e estava ameaçado
pela luz, mas hoje é outra a faca diante dos meus olhos.

Não quero ser o meu próprio estranho, estou entorpecido pelas visões.
É difícil

por todos os dias luz nas veias e trabalhar na retracção de rostos desconhecidos
até que se convertam em rostos amados e depois chorar
porque vou abandoná-los ou porque eles vão me abandonar.

.....................................................Que

estupidez ter medo à beira da falsidade, que cansaço

abandonar a inexistência e

morrer depois todos os dias.


[ardem as perdas]
.
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.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

enigmas



















scarabuss
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Todos temos um enigma
e como é lógico ignoramos
qual é sua chave seu sigilo
raspamos a proximidade
colecionamos os despojos
nos extraviamos nos ecos
e o perdemos no sonho
justo quando ia se decifrar

e tu também tens o teu
um enigma tão simples
que os postigos não o escondem
nem o descartam os presságios
está em teus olhos e os fechas
está em tuas mãos e as retiras
está em teus peitos e os cobres
está em meu enigma e o abandonas.

[o amor, as mulheres e a vida – enigmas]
.
.
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que viver seja isto

























Ficar em casa,
mergulhada nas dobras das horas
e não esperar ninguém.


Que os olhos escutem
e se olvidem do mundo.


Que me vista o silêncio
e respire em minha nuca
sua suave indiferença.


Que viver seja isto,
sem palavras de agulha
nem joelhos de pranto,


com o tempo despido à beira da cama
e minha boca dormindo em seu tímido beijo.

terça-feira, 12 de abril de 2011

ao ouvido





















malalesbia
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diz-me o caminho diz
onde diz como e com
que palavras e sem
que palavras e diz-mas
baixinho cuidado não
faças barulho não digas
antes que chegue
o nome e o sentido
do que devagarinho
queima entre um
silêncio e outro.


love is a one thing, baby, that you won't find on the ground

travessia

escombros e esquecimento


















[...]
tu não podias me ver porque montavam guarda
os rancores alheios
eu não podia te ver porque me ofuscava
o sol dos teus presságios

mesmo assim me perguntava constantemente
como serias na tua espera
se abriria por exemplo os braços
para abraçar a minha ausência

mas o muro caiu
foi caindo
ninguém soube o que fazer com os mal-entendidos
houve quem os juntou como relíquias

e de repente uma tarde
te vi sair de um buraco de névoa
e passar ao meu lado sem me chamar
nem me tocar nem me ver
e correr ao encontro de outro rosto
cheio de calma cotidiana

outro rosto que talvez ignorava
que entre ti e mim existia
tinha existido
um muro de berlim que ao nos separar
desesperadamente nos juntava
esse muro agora é só escombros
mais escombros
e esquecimento.

[o amor, as mulheres e a vida – epigrama com muro]
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segunda-feira, 11 de abril de 2011

céu...





















anjart
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Era preciso começar daí: céu.
Janela sem encosto, sem moldura, sem vidraça.
Abertura e nada mais, porém muito bem aberta.
Não preciso aguardar a noite amena:
nem levantar a cabeça
para perscrutar o céu.
Tenho céu atrás de mim, sob as mãos
e debaixo das pálpebras.
Estou enredada de céu
e isto me exalta.
Nem as montanhas mais altas
Estão mais próximas do céu
que os vales mais profundos.
Não há mais céu num lugar
do que em outro.
A nuvem está atada ao céu
indiferente como o túmulo.
A toupeira é tão feliz
quanto a coruja que abre as asas.
O objecto que cai no precipício
cai do céu no céu.
Partes poeirentas, líquidas, montanhosas,
passageiras e queimadas do céu, migalhas do céu,
brisas de céu e montes.
O céu é omnipresente
até nas trevas sob a pele.
Devoro o céu, rejeito o céu.
Estou com armadilhas na armadilha,
com o habitante instalado,
com o abraço abraçado,
com a pergunta presente na resposta.
A divisão entre céu e terra
não foi pensada de forma adequada
a respeito desta unidade.
Permite até que se sobreviva
no endereço mais exacto,
que pode ser achado mais depressa
se me procurarem.
Os meus sinais característicos são
o arrebatamento e o desespero.
.
.
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que a minha alma encontre o seu corpo


















scarabuss

deviantART


[...]
Já que não falamos para sermos escutados
Mas para que os outros falem
E o eco é anterior às vozes que o produzem;
Já que nem sequer temos a consolação de um caos
No jardim que boceja e se enche de ar,
Um quebra-cabeças que é preciso resolver antes da morte
Para poder ressuscitar depois tranquilamente
Quando a mulher foi usada em excesso;
Já que também não existe um céu no inferno,
Deixai que também eu faça algumas coisas:

Eu quero fazer um ruído com os pés
E quero que a minha alma encontre o seu corpo.

saudade anônima

rumor dos fogos













complejo
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pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória...amas
ou finges morrer

pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas

é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das aves

já não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes
.
.
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domingo, 10 de abril de 2011

ardem em mim os significados

























A luz ferve sob as minhas pálpebras.

De um rouxinol absorto na cinza, das suas negras entranhas musicais, surge uma tempestade. Desce o pranto às antigas celas, observo chicotes vivos

e o olhar imóvel das bestas, a sua agulha fria no meu coração.

Tudo é presságio. A luz é medula de sombra: os insectos vão morrer nas velas do amanhecer. Assim

ardem em mim os significados.

[ardem as perdas]

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quinta-feira, 7 de abril de 2011

quarta-feira, 6 de abril de 2011

destinatário desconhecido...

















MoriaLord
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Eu escrevia cartas de amor.
Não eram pra ninguém.
Escrevia cartas de amor como quem
tenta distrair o amor até ele chegar.
Eu provoquei o amor.
Fiz de conta que existia para parecer ocupado.
Tantas vezes me declarei sem ter nada.
Quando o amor chega,
as cartas de amor são desnecessárias.
Nossa letra treme como uma pálpebra.


[O amor esquece de começar]

colho o instante que passa...

o outro






















PabloMoranJr


só quero
o que não
o que nunca
o inviável
o impossível

não quero
o que já
o que foi
o vencido
o plausível

só quero
o que ainda
o que atiça
o impraticável
o incrível

não quero
o que sim
o que sempre
o sabido
o cabível

eu quero
o outro

.

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terça-feira, 5 de abril de 2011

neste agora incerto...

algo ama em meu amor...














complejo
deviantART




Algo me veste
O existir

Algo cobre com um sorriso
A idéia de sorrir

Algo inventa palavras
Em lavras de vento
Algo arde
Nos passos em que sou tarde

Algo ama em meu amor
Algo alga em praia além

Algo alma
Em meu ninguém.
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segunda-feira, 4 de abril de 2011

que os nossos olhos já não podem ver













anderton
deviantART




Tudo o que temos pertence a outros,
desconhecidos de nós, e ainda a outros,
e temo-lo como se o perdêssemos
ficando uma sombra, a nossa sombra.
Estamos longe de casa e essa sombra
é a única morada a que podemos acolher-nos.

A nossa voz não somos capazes já de ouvi-la, balbuciante;
e se a ouvíssemos não a compreenderíamos
porque falamos uma língua estrangeira.
Tivemos um passado mas também ele não nos pertenceu.
lemo-lo, ou ouvimo-lo a
outros mais densos que nós.

Aonde regressamos então?
Ao lado das fluvianas águas
águas de idas e vindas. Noite!
alguém nos chama mas
não é ninguém que conheçamos
nem ninguém de quem possamos dizer o nome.

Um murmúrio a que alguma razão passada
prende os sentidos e que perdura
no meio da vozearia da solidão e das interrogações,
um olho cego, um animal indecifrável atravessando a
distância e olhando-nos ainda,
a nós que os nossos olhos já não podem ver.
.
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um poema que antecipe a vida

























Esta Saudade
de te chamar pelo nome
Este receio
de te chamar pelo nome

Esta saudade
de manter a palavra
Este receio
de apenas manter a palavra

Esta saudade de uma vida
que não dê em poema
Este receio de um poema
que antecipe a vida.
.
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