quarta-feira, 30 de junho de 2010

perturbador

ah vida!



















Não falo para os consolados, os satisfeitos de si, os que nem riem
porque o riso ainda é sinal de alguma coisa que falta.
Ah vida! alguns te cantam para sentir-te nos lábios,
mas outros pedem-te a si próprios, não contentes contigo,
e as suas palavras terão apenas o obscuro nexo dos abismos sem nome
e a estranha música das mãos cortando o vazio intratável.
A minha voz é misteriosa de mais para que me compreendam.
Seria preciso ter uma alegria de pássaro para com as migalhas da vida
e a mágoa de não ser um pássaro a contentar-se com elas...

além, além, longe...






















imagem
mindcage


Onde habite o esquecimento,
Nos vastos jardins sem madrugada;
Onde eu seja somente
Lembrança de uma pedra sepultada entre urtigas
Sobre a qual o vento foge à sua insónia.

Onde o meu nome deixe
O corpo que ele aponta entre os braços dos séculos,
Onde o desejo não exista.

Nessa grande região onde o mar, anjo terrível,
Não esconda como espada
Sua asa em meu peito,
Sorrindo cheio de graça etérea enquanto cresce a dor.

Além onde termine este anseio que exige um dono à sua imagem,
Submetendo a sua vida a outra vida,
Sem mais horizonte que outros olhos frente a frente.

Onde dores e alegrias não sejam mais que nomes,
Céu e terra nativos em redor de uma lembrança;
Onde ao fim fique livre sem eu mesmo o saber,
Dissolvido em névoa, ausência,
Ausência leve como carne de uma criança.

Além, além, longe;
Onde habite o esquecimento.

domingo, 27 de junho de 2010

todo risco

















imagem
kaveh steppenwolf

cego anseio

















imagem
rafhael guarino


Já não tive outro viático
que minha ansiedade de céus
minha fúria por viver

e ver as costas esquivas dos sonhos
meu cego anseio de perder
meu corpo
em outro
corpo cego

Nada mais tive que esta sede
isca oculta de todos os incêndios
na ânsia
de alcançar minhas raízes desprende-se dentro
desde este coração que já consome
em tição o cansaço da lembrança
e em que germina oculto
o musgo do silêncio.


Caetano Veloso - Nosso Estranho Amor

Teias de aranha penduradas da razão





















Teias de aranha penduradas da razão
Numa paisagem de cinza absorta;
Passou o furacão do amor,
E nenhum pássaro fica.

Tão pouco nenhuma folha,
Todas vão longe, como gotas de água
De um mar quando seca,
Quando não há lágrimas bastantes,
Porque alguém, cruel como um dia de sol na primavera,
Só com sua presença dividiu em dois um corpo.

Agora faz falta recolher os pedaços de prudência,
Ainda que sempre nos falte algum;
Recolher a vida vazia
E caminhar esperando que lentamente se encha,
Se é possível, outra vez, como antes,
De sonhos desconhecidos e desejos invisíveis.

Tu nada sabes disto,
Tu estás além, cruel como o dia,
O dia, essa luz que abraça apertadamente um triste muro,
Um muro, não compreendes?,
Um muro frente ao qual estou só.


Amy Winehouse - Will You Still Love Me To

quinta-feira, 24 de junho de 2010

me sustento em ti
















imagem
vic4u.deviantart



Poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe
Ter escrito com o sangue.
Também poderia ter escrito as visões
Se os olhos divididos em partes não sobrassem
No vazio de ceguez
E luz.
Poderia ter escrito o que sei
Do futuro e de ti
E de ter visto no deserto
O silêncio, o fogo e o dilúvio.
De dormir cheio de sede e poderia
Escrever
O interior do repouso
E ser faúlha onde a morte vive
E a vida rompe.
E poderia ter escrito o meu nome no teu nome
Porque me alimento da tua boca
E na palavra me sustento em ti.

sempre que te vi recomecei





















imagem gió m.


Não fui margem sem outra margem onde ligar os braços
Mas fui o tempo solto para entrançar os meus cabelos
E o movimento dos teus pés descalços

Não fui a solidão inteira nem reclusa
Para o único repouso entre o silêncio
Nem fui a flor exausta defendendo-se
De toda a mão que a quis despetalar

Não fui a casa que a si mesma se abrigou
Nem a morada que nunca se acolheu
Mas o tempo a pedir que me deixasse

Naquilo que não fui vim encontrar-me
E sempre que te vi recomecei


Ryuichi Sakamoto-Forbidden Colors

terça-feira, 22 de junho de 2010

faz de conta
















imagem storytaylor


Á nem sei mais o que é real. E por vezes é bom não saber.
"A ignorância é a felicidade".
Hoje quero essa felicidade escondida e ignorada das pequenas coisas, de quem sabe ver a beleza mesmo quando ela nos mostra a face mais feia. Quero ignorar a máscara disforme de tanto sentimento torto, de cores gritantes e escuras que você coloca vez em quando. Saber olhar nesses olhos cansados, de brilho tosco, e um tanto petrificado e com todo meu não-saber sentir presença de mar nessas retinas áridas. Quantas eras glaciais em tua vida?! E quem poderia contar? Tem gente que fica tão pouco, por urgência de vida ou convite de morte, que não há como dizer, e nem como calar. Há quem narre uns fatos. Há quem conte um conto. Há quem analise. Há quem fale de si em 3° pessoa do singular, sem singularidades. Haveria ou haverá quem possa apenas viver com, para e por?! E que traga apenas consigo seu ser in-completo, em construção...
E amor pulsando. Feito coração. Só isso basta! Basta sempre e em qualquer estação ou qualquer era.
Pensamento com peso e concretude de realidade...coisa de quem busca apenas a realidade leve e mágica de um sonho. Sonho bom.
É que a menina em mim acordou tão cedo e quer tornar meu dia doce...
Repleto de tua presença...mesmo que hoje eu precise olhar muito além do que vejo para encontrar doçura em ti. E para meu con-solo de mulher, a menina em mim brinca sempre de faz-de-conta.

há sempre!...

sempre assim!

domingo, 20 de junho de 2010

onde a alma é livre















imagem
leyla emektar



Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor -
mesmo que no silêncio assustador se fundam
os lábios e o coração se rasgue de amor.

Onde a amizade nada pode nem os anos
da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
à vagarosa volúpia e seu langor lento.

Quem corre para o limiar é louco, e quem
o alcançar é ferido de aflição...
Agora compreendes porque já não bate
sob a tua mão em concha o meu coração.

das lágrimas

é impossível...

e não sei






















imagem
b.berenika

sexta-feira, 18 de junho de 2010

o ar, amor
















imagem radu voinea


evanescence-bring me to life

tem tanta pressa o corpo!


















imagem fulvio pellegrini

O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sede, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo.
Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.

quando o coração chega à pele

a transparência da água

quarta-feira, 16 de junho de 2010

ah, meu coração...



















Ah, meu coração
fluente atento apocalíptico resoluto
pleno de vícios
alegre formoso
e em forma de gota.
No amor tem seu reino:
exercício inquieto e longo
(de claro e lúcido desempenho)
invadindo o outro
mas invadindo-o de fato
além do tato do cansaço do medo
cavalgando-o como idéia
esporas leves
pernas rudes
égua e cavalos
galope escancarado
à luz de outras janelas.
Porque se não agarra assim o outro
meu coração se perde
deixa-se ficar como coisa conclusa
vendo e tendo como urgente
um limite falso e amortizado.

Solidão de árvore
esperando o fruto.

Solidão de Lázaro
esperando o Cristo.

Solidão de alvo
esperando a seta.

Ave, poeta.

domingo, 13 de junho de 2010

amo-te

nem tento...

















imagem adolfo valente

Estive pensando nesse mistério que faz com que a vida da gente se encante tanto por outra vida. E sinta vontade de escrever poemas. Garimpar estrelas. Deixar florir pelo corpo os sorrisos que nascem no coração. Nesse mistério que nos faz olhar a mesma imagem inúmeras vezes, sem cansaço, mesmo nos instantes em que é feita de papel ou de memória. Que nos faz respirar feliz que nem folha orvalhada. Querer caber, com frequência, no mesmo metro quadrado onde a tal vida está. Cantarolar pela rua aquela canção que a gente não tinha a mínima ideia de que lembrava.

Estive pensando nesse mistério que faz com que a vida da gente encontre essa vida na multidão planetária de bilhões de outras. E sem saber que ela existia, perceba ao encontrá-la que sentia saudade dela antes de conhecê-la. Estive pensando nesse mistério que faz com que aquela vida que acaba de encontrar a nossa nos deixe com a impressão de estar no nosso caminho desde sempre, como se fosse um sol que esteve o tempo todo ali e a gente somente não o ouvia cantar. Nesse mistério que nos faz trocar buquês dos olhares mais cuidadosos. Que nos faz querer cultivar jardins, lado a lado. Nesse mistério que faz com que a nossa vida queira um bem tão grande à outra vida, que vai ver que isso já é uma prece e a gente nem desconfia.

Estive pensando nesse mistério lindo que você é para alguém e alguém é para você ou que ainda serão um para o outro. Nessa oportunidade preciosa dos encontros que nos fazem crescer no amor também com o tempero bom da ludicidade. Nesse clima de passeio noturno em pracinha de cidade pequena. Nessa paz que convida o coração pra se recostar e repousar cansaços. Nesse lume capaz de clarear um quarteirão inteirinho da alma. Nesse abraço com braços que começam dentro da gente. Nessa vontade de deixar o mundo todo pra depois só para saborear cada milímetro do momento embrulhado pra presente.

Estive pensando nesse mistério que não consigo desvendar. Nem tento.

[ana jácomo]

sexta-feira, 11 de junho de 2010

és linda!














imagem
nerysoul
deviantart


o que lês não é o texto
é o contexto

no texto
duas palavras escritas somente
baratinhas e simples
sementes

no contexto
não há imagem que te motive
Onde um amplo silêncio de um templo imenso
onde ecoasse o texto de duas palavras lidas?

no texto
não escutas som nem tom
não sentes toque nem olhar

no contexto
preciso dos teus sentidos
preciso de ti
toda

da tua boca
para que as leias alta a voz entoada
do teu ouvido
para que as escutes na tua leitura
do teu tacto
para que te entreabras e te deixes ensopar
no silêncio do tal templo imenso
da tua imaginação
para que me cries presente nos sentidos

Agora... sim!
Lê,
como te pedi,
as duas palavras que escrevi para ti...

És linda!

...















imagem joan kocak



são
mudas palavras contidas
sinais repetidos sem espaços

são
pausa em melodia sem pauta
interrupção e hesitação
suspensão para surpresas
tuas dúvidas e timidez
pastos para as palavras
aguilhões da tua imaginação

são
só três
só três pontos
escritos duma vez
sinal de essências
sinal com pontos
sinal de pontuação
as reticências

se soubesses o que eu quero...
se soubesses o que eu quero escrever...
dizias-me o que são estes três pontos...
dizias-me que palavras deveriam ser...

três...tão pouco...
três pontos...
tanto para escrever...
tanto num quase nada...

quinta-feira, 10 de junho de 2010

e voltei a ser eu



imagem latoday

dessa agudez que me rodeia






















imagem joan kocak

dissipo...






















imagem mindcage

Até hoje perplexo
ante o que murchou
e não eram pétalas.

De como este banco
não reteve forma,
cor e lembrança.

Nem esta árvore
balança o galho
que balançava.

Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado

não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo.

[Drummond - Ontem]

noutro lugar




















imagem latoday

terça-feira, 8 de junho de 2010

corpos que acontecem...


imagem
gregory colbert















“Nasci quando me vi
Melancolicamente sem raízes
Tudo se acaba onde me acabo”

Vasco Costa Marques


Abriga o teu corpo no meu,
Neste breve instante
Parte ínfima e frágil da madrugada
Neste momento que tão ausente
Não se notará nos relógios do mundo e
Se finito, se restituirá
Onde meu tudo o mais foi roubado.

Ausentemo-nos por paralelos
Que os planisférios tomavam por
Perdidos, e perdidos nessa parte mais
Breve do dia, na madrugada,
Ínfima e ausente de própria vida,
Sigamos o rasto do corpo que em
Nós, se ausentou por tempo e medidas
Indefinidos.

Esqueçamos por um momento,
A humana bússola que funciona
Do lado esquerdo do peito, imperfeito,
Envolto no perpétuo arame farpado,
Que nada anima, ou pelo menos parece.
Que perecido, qual
Relógio, que da abóbada celeste
Marca em constante abandono, o nosso
Passado menos perfeito,
Pretérito violento de quem se acontece.
O nosso sangue, o nosso corpo, sem coração
Até funciona!

Do que em mim adormeceu,
Da palavra que em mim se prometeu,
Encarnada no abrigo que tomava da
Parte o improvável,
E sem o inexplicável das coisas impossíveis,
Aconteceu.
Abrigado o teu corpo no meu
O mundo e tudo o que nele se conteve,
Obra dum Deus impaciente,
Ganha por fim, sentido e presença
E o que antes eram cinzas, agora barro.

E para todas as palavras onde e
Por se obrigarem no meu corpo enquanto teu,
Não há explicação estranha ou finita;
Gostaria que houvesse outra explicação,
Mas nada mais que isto, aquilo ou mais além:
Simplesmente os corpos palavras, corpos o meu teu
Acontecem!

[Leonardo B.]