sábado, 16 de janeiro de 2010

olá, coisa ruim...

Olá, coisa ruim, coisa péssima, o assunto é contigo - e comigo. Não dizem que a gente deve exorcizar nossos demônios? Não sei como se faz isso, então resolvi escrever, que é sempre um método. Você aí - na verdade, aqui: escondido em mim, calado, canastrão. No funfo você se diverte, adora me ver atrapalhada. "Hoje ela se entrega, hoje ela caí." Não caí. Você vai me tentar até o final, mas não entro no seu esquema, não vou ceder.
Por que você não se instala em outro corpo, em outra mente, que tal vazar, me esvaziar, se escafeder? Eu já acreditei, um dia, que você era um inquilino necessário, o tal do contraponto, um equilíbrio, algo que todo mundo traz dentro, alimenta e blablablá. Mas estou cansada. Esgotada mesmo. Não consigo mais negociar com você. Esta é uma carta de demissão. Tô te demitindo, te expulsando, porque você é que tem que sair, eu não posso sair de mim mesma.
Foi por pouco, ontem. Tem sido por pouco todos os dias. Semana passada, quando eu peguei a estrada e fui dirigindo até a quela cidadezinha para dar uma palestra na universidade, pensei que não iria conseguir voltar. Me veio a idéia bem clara: daqui eu sigo em frente, não retorno mais, o dinheiro que tenho me basta pra pagar umas poucas diárias e a gasolina, depois arranjo um emprego em qualquer buraco e começo outra vida, que nem nos filmes. Pinto o cabelo, troco de nome, ninguém me acha. Claro que eles iriam me procurar, porque eu não posso ser a melhor mãe do mundo mas eles não têm outra.
E com aquele pivete a mesma coisa. Eu podia ter subido na carona daquela moto, eu bem que quis. Um guri bonitinho, sem camisa, de corpo bom, me secando na fila do banco como se eu fosse uma biscate, me esperando na saída, quer que eu te leve pra algum lugar? Eu queria, viu. Eu queria ir com ele feito uma pizza, naquela moto enferrujada, com aquele guri sem camisa. O que de mau poderia me acentecer? Levar umas bofetadas na cara, ser comida por três no meio do mato, o cara me roubar o relógio. Mas poderia ter sido também uma tarde doce. A gente nunca sabe o que perdeu. Voltei pra casa com a integridade de sempre e , pra variar, nenhuma surpresa me aguardava.
Ontem eu pensei que iria surtar . Tudo começou com aquela voz metálica da vizinha falando com o zelador através da janela do terceiro andar. Amanhê tenho que passar roupa. Amanhê. E continuava: passo na terça-feira, às vezes na quarta. Às vez. E não era só o fato dela falar desse jeito medonho, era também o fato de ela passar roupa toda terça-feira, como se fosse uma missa, tem que ser aquele dia, naquela hora, em nenhuma outra: uma mulher programada para passar roupa na terça. Claro que não tenho nada haver com isso, mas foi me dando uma irritação, fui pensando na minha vida e me lembrei que vou ao supermercado toda segunda, e faço a unha toda a terça, e toda quarta-feira minha sogra almoça conosco, e me deu uma raiva desses compromissos que a gente inventa para se sentir com os pés no chão e para evitar sair por aí fazendo besteria, então eu pensei: vou fazer besteria, vou fazer. Tive vontade de quebrar a casa toda. Derrubar enfeites da cristaleira, quebrar tudo que fosse vidro, jogar cadeiras da janela, só pelo prazer do estrondo, mas antes que eu iniciasse minha carreira de vândala comecei a chorar, e foi um choro tão sentido que você até riu de mim, pensou "hoje ela se entrega, hoje ela cai", mas eu não caí, e meia hora depois estava dobrando as roupas das crianças que estavam todas esparramadas pelo chão.
Você é forte, demônio. Eu também sou. Mas rogo por trégua, jogo a toalha, te peço de joelhos: tome um chá de sumiço, vá dar uma volta, aportar em outra alma, que esta minha já está gasta e não vê graça alguma nas suas provocações. Quero que você me deixe, porque simpatizo cada vez mais com você.
Leila
[Martha Medeiros - Tudo que eu queria te dizer]

2 comentários:

  1. GOSTEI QUERIDA ME, QUE DESABAFOS TÃO FAMILIARES PARA MIM!...FAZER BESTEIRA, QUANTAS VEZES APETECE? SAIR DOS CARRIS, MESMO QUE A DESLOCAÇÃO SEJA MAIS DIFÍCIL...
    BOM TEXTO!...
    BJS,
    MANUELA

    ResponderExcluir
  2. Texto perfeito...
    AS vezes tudo o que a gente quer é sair da linha,é não ter que pensar no que os outros irão pensar, ou no que se tem que fazer porque é o certo.

    Aiaia...existem dias em que tudo o que se quer é mandar tudo para o espaço...

    Beijos e borboletas

    ResponderExcluir