quarta-feira, 19 de outubro de 2011

para se confessar de alegria


















tokarchuk-deviantART


Não é preciso ter uma razão para cantar.
Para dar ao corpo uma manhã mais tarde, uma noite mais úmida.
Para decorar a letra tremida da carne.
Canta-se como uma telha solta do telhado, para se confessar de alegria.
Canta-se para não dizer tudo o que resta a dizer.
Para não ser dito o que não cabe, para que sejam lidas as lâmpadas.
Canta-se para confundir o pão e os insetos, as mãos e os seios, os joelhos e a ladeira da chuva.
Canta-se para não dormir durante a leitura. Para roçar um vestido. Para se privar do invisível.
Canta-se para não assentar o fundo, para retardar o caminho de regresso.
Canta-se ainda que sem voz afinada, sem apetite.
Canta-se como uma poeira luminosa que sobe dos tapetes e
que é só vista na infância ou quando se canta.
Canta-se com o relógio de árvore.
Com as ervas mastigadas pelas águas, pela extensão dos cabelos.
Canta-se pelo silêncio crespo das uvas, pelas pedras onduladas, para subir escadas.
Canta-se para ultrapassar a mágoa, para não ter motivos.
Canta-se para confundir a confiança e a carícia, injuriar com um beijo.
Canta-se para arrumar os ombros, ajeitar a gola, subir na grama.
Canta-se para alimentar o que não é letra. Para despedir-se do começo.
Canta-se para viver o mesmo dia dos lábios. Pela falta de equilíbrio dos segredos.
Canta-se para persistir quando era o momento de se apagar.
Canta-se para convencer o passado que ele ainda não imaginou o suficiente.
Canta-se para respirar mesmo sem ar. Para respirar embaixo de um corpo.

[o amor esquece de começar - para se privar do invisível]

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